Professores e artistas ajudam a decifrar 'Grande Sertão: Veredas'

Cinthya Oliveira
cioliveira@hojeemdia.com.br
09/07/2016 às 14:48.
Atualizado em 16/11/2021 às 04:14
 (Rodrigo rosa / Divulgação)

(Rodrigo rosa / Divulgação)

Lançado há 60 anos, “Grande Sertão: Veredas” permanece como um grande desafio para muitos leitores. A língua criada por João Guimarães Rosa, com neologismos e inspirações em diversos idiomas, provoca um natural estranhamento e não é difícil encontrar quem diga que tenha desistido da leitura já nas primeiras páginas. 

Mas vale a pena enfrentar a dificuldade inicial e mergulhar na saga do jagunço Riobaldo pelo sertão mineiro e se envolver por sua paixão platônica por Diadorim. Um dos que garantem isso é o booktuber (youtuber especializado em livros) Rodrigo Focaccio, do canal Cultebook Literatura.

“A primeira vez em que me pediram para ler foi na escola. Comecei e logo parei, preferi pegar o ‘Primeiras Estórias’, para ter o primeiro contato com Guimarães Rosa pelos contos”, diz o youtuber, que decidiu ler o clássico até o final quando estava na faculdade, estudando Jornalismo. “Compreendi que o livro oferece uma travessia para o leitor, pois você atinge um outro patamar como leitor após terminá-lo”. 

Depois, Rodrigo decidiu ler outras obras do mesmo autor, como “Sagarana” e “Corpo de Baile”, que também não são fáceis no início. “Sempre que a gente começa ou recomeça uma obra do Rosa, dá uma travadinha. É como ficar um tempo sem falar um idioma, sempre temos uma dificuldade inicial, mas depois nos acostumamos”, diz o youtuber, que acredita ser importante desmistificar obras que são tidas como inatingíveis pelo grande público.

Cem páginas
O ilustrador Rodrigo Rosa teve seu primeiro contato com o clássico há alguns anos, quando foi convidado pela editora Globo para fazer as imagens da versão em quadrinhos de “Grande Sertão: Veredas”, ao lado de Eloar Guazzelli – obra que ganhou recentemente uma segunda edição, mais simples e acessível. “Impossível dizer que não há um grau de dificuldade, sofri um baque no início. Mas desde o princípio, o leitor já percebe a força poética do livro”, diz Rodrigo. 

No segundo dia de leitura, passado o susto, ele conseguiu embarcar na linguagem roseana. “Quando chega lá pela página 100, o próprio autor afirma que é hora de colocar uma ordem cronológica na história e, nesse momento, você já está tomado pela mistura de linguagens”.

Conflitos universais
A professora de Português Fernanda Braga indica a leitura a seus alunos, mas não sem antes apresentar alguns conselhos. “Primeiramente alerto sobre a necessidade de extrapolar o pensamento, digo sobre o desafio de ler além das palavras e como essa obra-prima proporciona isso. Os alunos precisam compreender que a linguagem e a contextualização de ‘Grande Sertão: Veredas’, se entendidas como algo além do sertão, podem ser enxergadas como conflitos universais e os seus próprios, em alguns casos”, diz Fernanda, que apresenta dicas em redes sociais pelo perfil Professora Fernanda Braga. “A melhor forma de aproximar os alunos de hoje à leitura é inseri-la em suas realidades”.

“Os conflitos são a principal virtude de ‘Grande Sertão: Veredas’. São conflitos humanos que expõem a difícil tarefa de viver e seguir seu destino, a luta entre o bem e o mal, a vida e a morte e os amores complicados” Fernanda Braga, professora.

‘O importante é perceber o sentido do conjunto do parágrafo’
O Minas Tênis Clube vem realizando um projeto literário chamado “Letra em cena. Como ler” e, na última edição, o livro debatido foi “Grande Sertão: Veredas”. Mais de 200 pessoas lotaram o espaço para ver o professor Antônio Sérgio Bueno falar sobre a obra.

Doutor em Literatura, Antônio leu o clássico de Rosa nove vezes. E garante: sempre encontrou novidades. A primeira leitura foi em 1966, dois anos após ter contato com “Sagarana”. “Estava na universidade, começando a estudar Letras, e tive a sorte de não conhecer o segredo de Diadorim”, lembra.

Ele dá uma dica para quem vai pegar o livro pela primeira vez. “Como tem ali a oralidade sertaneja misturada a uma erudição, para se vencer a dificuldade, não se deve buscar o significado das palavras. O importante é perceber o sentido do conjunto do parágrafo, da frase”, diz Antônio. 

Ler “Grande Sertão” depois de outra obra de Rosa também facilita o contato com o livro. “Você tem que se aclimatar ao novo código, ir lentamente entrando naquele universo linguístico. É um universo estranho a princípio, pois está ali uma língua que não existe em lugar nenhum. É uma alquimia verbal”. 

Mas não é só a linguagem que impressiona. Os questionamentos filosóficos de Riobaldo sobre religião e o amor por Diadorim também merecem atenção especial. “Rosa inovou ao nos apresentar um sertão existencial e metafísico”.Orlando Bento / Divulgação Antônio Sérgio Bueno – “A mais bela metáfora da literatura brasileira: ‘Diadorim é a minha neblina’”

Referência afetiva
Nesse mesmo evento, o ator Odilon Esteves fez leitura dramática de cinco trechos. Ele conta que leu “Grande Sertão” há oito anos, quando tinha 29 anos de idade, e deve relê-lo em breve – tanto que levou um exemplar para o Rio de Janeiro, onde cumpre temporada do espetáculo “Urgente”.

“Sou de Novo Cruzeiro (Vale do Jequitinhonha), e li o livro lembrando da musicalidade das pessoas com quem convivi na infância. Havia para mim uma referência afetiva”, conta. 

Odilon diz ainda que acredita ser possível aprender muito mais sobre a obra. “Fui estudar mais sobre o livro e vi que palavras que acreditava ser neologismo e onomatopeias, na verdade, existem. Como eu era do nordeste de Minas, acreditava que era garantido conhecer as palavras do universo roseano”, afirma o ator, que está estudando francês e acredita encontrar vestígios dessa língua latina na narrativa. “Rosa falava várias línguas e se inspirava em todas elas para desenvolver o texto”.Orlando Bento / Divulgação 

Odilon Esteves – “Antes de pegar ‘Grande Sertão’, aconselho começar pelos contos de ‘Primeiras Estórias’”

 
Palácio das Artes tem programação dedicada à obra de Guimarães Rosa
Para comemorar os 70 anos de “Sagarana” e os 60 anos de “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas”, o 2º Inverno das Artes apresenta três atividades especiais. As apresentações são gratuitas e acontecem na Sala Juvenal Dias nos dias 20, 27 e 28 deste mês, sempre às 19h30. No dia 20, os músicos Renato Motha e Patrícia Lobato apresentam o projeto “Rosas para João” que propõe a união entre música e literatura, interpretando e analisando as obras do autor. No dia 27, o compositor Celso Adolfo apresenta a série de canções “Música para Sagarana”, baseadas no livro homônimo do autor, criadas para o CD em que o músico aprofunda os sentidos do texto para compor as canções. No dia 28, o Grupo Miguilim, de contadores de estórias, interpreta contos do autor retirados desde o primeiro livro de Guimarães Rosa, “Sagarana”, até o último, “Magma”. Divulgação Celso Adolfo – Show do dia 27 faz homenagem ao livro “Sagarana”


Cordisburgo recebe a 26ª edição de festival dedicado ao seu filho ilustre
De hoje a sábado, acontece a 26ª edição da Semana Roseana de Cordisburgo. A extensa programação conta com palestras, contação de estórias, exposição, feira gastronômica, sarau, apresentações teatrais, entre outros. Um dos destaques é a apresentação que os professores Bernardo Gontijo e Diomira Pinto Faria, do curso de Turismo da UFMG, fazem na quarta-feira, às 10h. Eles vão tratar do projeto de extensão “Cartografia Roseana”, cujo objetivo é apoiar os municípios de Cordisburgo e Morro da Garça na identificação e mapeamento do patrimônio material e imaterial do sertão e do sertanejo. Programação completa no site cordisburgo.mg.gov.br.

Rio Novo homenageia autor em Festa Literária, realizada em agosto
A terceira edição da Festa Literária de Rio Novo (cidade vizinha a Juiz de Fora, na Zona da Mata) ainda não teve a programação completa divulgada. Mas já se sabe que Guimarães Rosa será o grande homenageado do evento, que acontecerá de 11 a 14 de agosto. Temas como a obra de Rosa, a literatura mineira, a cultura do tropeirismo e o mercado editorial brasileiro estarão em pauta, debatidos por convidados renomados. De acordo com o perfil do evento no Facebook, mais de 50 atrações estão confirmadas dentre autores, espetáculos de teatro, shows musicais e oficinas. Mais informações no site cavaleirosdacultura.org.br.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por