Projetos e artistas mantêm viva a tradição dos tempos de “moça prendada”

Thais Oliveira - Hoje em Dia
20/07/2015 às 07:20.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:59
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

Dê uma vasculhada no guarda-roupas e conte quantas peças com bordado possui. Deve ter, lá, ao menos uma blusinha caprichada com agulha e linha. Se você for homem e achar que este não é o seu caso, não se engane. Sabe aquele desenho da marca localizado no topo da camisa? Então... Repare bem e se surpreenda. De variados traços e pontos, os bordados estão em toda parte e desde que o mundo é mundo.
A mestranda em História, Maria do Carmo Guimarães Pereira, 70 anos, conta que, em Minas Gerais, por exemplo, um bispo teria exigido a vinda de francesas à Mariana, à época, capital do Estado, para ensinar a arte às “mulheres de família”. “Bordar fazia parte da educação das meninas. Até algumas décadas atrás, era comum ver o bordado como disciplina escolar”, diz.
Ela, que tem como tema de dissertação a história do bordado e o seu desenvolvimento artístico e sociocultural, afirma que o modo mineiro de bordar é bem peculiar. “No litoral do Nordeste, houve muita influência holandesa e, no Sul do Brasil, tem muito dos italianos, húngaros e ucranianos e são mais coloridos. Já Minas, recebeu influências com menor intensidade. Por isso, temos um bordado mais fino. Em qualquer lugar do país, quando se bate o olho, se sabe que aquele bordado é mineiro”, analisa.
Nascida em Joaíma, no Vale do Jequitinhonha, Maria do Carmo se mudou para Belo Horizonte, com a família, aos 4 anos de idade. Já naquele período, ela tinha certa familiaridade com os tecidos. “Toda menina ganhava, assim como uma boneca, uma caixinha de costura como brinquedo”, lembra.   Insight valioso
Formada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria do Carmo dedicou-se a vida inteira a ensinar. Primeiro foi professora primária; depois, de História da Arte, no período em que morou em Ipatinga.
De volta à capital, veio a vontade de mudar de ares. “Estava na praia quando pensei: ‘o que sei fazer da vida?’ ‘Bem, sou uma ótima dona de casa e poderia ensinar isto para as meninas da nova geração’”, conta.
O insight, ocorrido já há mais de 30 anos, acabou dando origem à Maria Arte e Ofício. “Além de bordado, ensinamos a cozinhar e afazeres de ‘moça prendada’, aquelas coisas que já não se aprende mais na escola ou em casa”, diz.
Memória viva
Devido ao novo ofício, Maria do Carmo foi tomando conhecimento, ao longo dos anos, de peças bordadas que são verdadeiras relíquias de família. Por isso, ela resolveu criar, há pouco mais de um mês, a Associação pela Preservação da Arte do Bordado (Apab).
“Estamos montando um acervo com estas peças e contando as histórias de quem as bordou. A ideia é fazer um memorial, para que esta arte não se perca; todos estão convidados a colaborar”, afirma.
Artista capixaba começou a bordar com série que retrata cena urbana
Diferentemente de Maria do Carmo, Pamela Reis, 28 anos, não veio de família de bordadeiras. Nem tinha, ela, até poucos anos, contato suficiente com a arte para se dizer uma grande admiradora. Bastou, contudo, colocar, entre os dedos, uma agulha com linha para a moça tomar gosto pelo ponto do bordado.
“A primeira vez que tive contato com o bordado foi com a série ‘Do Urbano ao Íntimo’, exposta em 2013 e em 2014. As obras foram feitas em tecidos e criadas a partir da imitação do risco do manequim”, afirma ela, que é artista visual.
Intimista e urbana

A mostra – originada a partir da série “Não Lugares” (2010/2011) – foi desenhada durante os percursos de ônibus da artista por Vitória (ES), cidade onde nasceu, e traz o contexto da rua para o íntimo do lar. “As figuras foram inspiradas pelo que via da janela do ônibus e foram colocadas em mais de 50 almofadas, o que explica o nome da exposição”, reforça.
Continuidade

A exposição rodou por várias regiões do país, inclusive, esteve em Minas, na Galeria de Arte Nello Nuno, em Ouro Preto, no ano passado. Agora, Pamela, se prepara para o próximo desafio. “Estou criando uma nova série com bordados em fotografias, mas, desta vez, com um sentido mais erótico. Acredito que até o fim do ano já terei uma boa produção”, adianta a artista.   Bordadeira mineira lança projeto para resgatar memória afetiva O talento de bordar parece estar no sangue de Fátima Coelho, 58 anos. Pedagoga de uma família de bordadeiras, um dia ela se viu doente e proibida de exercer a profissão. “Como estava em casa, minha tia me pediu para bordar 50 paninhos, que viraram 150. Nesta época, uma moça me convidou para dar aula de bordado. Recusei por duas vezes e só aceitei na terceira tentativa”, lembra.
O que começou de forma relutante tornou-se um dos maiores prazeres de Fátima. “Dei aula uma vez para uma moça que tinha acabado de perder o marido e ele era tudo na vida dela. Fui percebendo como o bordado era importante na recuperação das pessoas. Ele pode transformar vidas”, garante.   FÁTIMA COELHO – Histórias de bordadeiras motivaram a criar o projeto “Mãos que Bordam”. Foto: Eugênio Moraes   Resgate afetivo
Com o contato diário com as pessoas, Fátima percebeu que podia usar o bordado para resgatar a memória afetiva de suas alunas.
“Para mim, o bordado é a forma mais simples e mais complicada de expressar o ser. É simples porque são apenas pontos, coisa que você pode aprender com a sua mãe. E é complicada porque, a partir do momento que se começa a bordar, você começa a resgatar várias lembranças afetivas, tanto as boas como as tristes”, atesta.
Já experiente no ofício, ela passou a ser convidada a dar palestras sobre a arte pelo país. Numa delas, na Unicamp, em Campinas, Fátima tinha o dever de contar parte da sua história. “Foi quando tive a ideia de convidar minhas alunas a bordarem as suas mãos”, conta.
Ela, no entanto, não esperava que um projeto iniciado despretensiosamente iria afetar vários cantos do Brasil e até do exterior. “Assim, nasceu o ‘Mãos que Bordam’, que consiste em reunir mãos bordadas das pessoas. Ao todo, já recebi mais de 170; algumas vindas do Paraguai também”, diz.
Segundo a bordadeira, o objetivo é criar vários painéis com o material e montar uma exposição, até o fim do ano e, posteriormente, publicar um livro.   Nova exposição do CCBB traz os bordados de José Leonilson
O artista plástico cearense José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993) devia ter uns 15 anos de idade quando decidiu aventurar-se na arte de bordar, conta a irmã Ana Lenice Dias. “O primeiro bordado dele recebeu o nome de ‘Mirro’ e ele usou a manga de uma jaqueta jeans como suporte”, lembra ela.
A habilidade, diz Ana, tem raiz em casa, no entanto, o artista soube traçar caminho próprio. “Minha mãe era uma bordadeira de ‘mão cheia’; não dava para saber o que era frente e o que era verso nos bordados dela. Já o bordado do Leonilson era uma obra, expressavam sentimentos. Os resultados eram totalmente diferentes”, afirma.
De acordo com ela, o irmão foi aprendendo a bordar aos poucos, vez ou outra pedindo orientações técnicas, mas, geralmente, fazendo sempre do jeito que queria. “E o mais legal é que ficavam lindos”, opina.   Exposição
Parte deste talento de Leonilson poderá ser conferido pelo público belo-horizontino, a partir desta quinta-feira (23), no Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB-BH, na mostra “Leonilson: Truth, Fiction”. Além de bordados, a exposição traz pinturas e desenhos e é um recorte dos últimos cinco anos de vida do artista. De acordo com o curador, Adriano Pedrosa, as peças escolhidas estão cheia de referências íntimas e cotidianas, além de acentuar as qualidades sintéticas ou “minimalistas” de Leonilson.
“Leonilson: Truth, Fiction”. CCBB (Praça da Liberdade, 450). Visitas gratuitas de quarta à segunda, das 9h às 21h. De 23/7 a 28/9.
Museu do bordado de BH reúne peças datadas a partir de 1790
Fundado pela advogada, escritora, palestrante e artista contemporânea Beth Lírio, o Museu do Bordado (rua Jornalista Afonso Rabelo, 47, Cidade Nova) recupera e restaura peças bordadas. O acervo atual conta com toalhas, lençóis, fronhas, toalhas de batismo e camisolas, sendo algumas datadas de 1790. É feito ainda o trabalho de catalogação dos doadores e seus donos anteriores, técnicas de ponto utilizadas, período em que foram feitas e ainda organização e embalagem dos tecidos. Quem quiser conhecer o museu deve agendar uma visita pelo (31) 3484-1067.
Pirapora sedia 1° Encontro Nacional do Bordado   Encerrou-se no último sábado, o 1° Encontro Nacional do Bordado. Intitulado de “Colóquio entre Bordadeiros e Bordadeiras”, o evento foi realizado pelo Instituto de Promoção cultural Antônia Diniz Dumont (ICAD) e o Grupo Matizes Dumont, na cidade de Pirapora, no Norte de Minas Gerais. Com o objetivo de promover a troca de experiências e ensinar novas técnicas, os participantes puderam conferir palestras, oficinas, mostras de bordados e comercialização de produtos. No fechamento, houve ainda a apresentação da Cia de Danças Folclóricas Zabelê, dirigida por Mariângela Diniz.

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