Em cartaz nos cinemas, 'King Kong en Assunción' mostra uma sociedade baseada na cultura do ódio

Paulo Henrique Silva
phenriquehojeemdia.com.br
03/09/2021 às 09:27.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:48
 (FOTOS ARTHOUSE/DIVULGAÇÃO)

(FOTOS ARTHOUSE/DIVULGAÇÃO)

À certa altura de “King Kong en Assunción”, o alcoolizado matador que protagoniza o filme de Camilo Cavalcante, chamado simplesmente de Velho, entra no quarto de um hotel no Paraguai onde se depara com quadros de vários presidentes e ditadores da América Latina. Do Brasil, aparecem Fernando Collor e Michel Temer. 

“Ele está ali numa vingança contra o poder, contra quem ele sempre defendeu. O Velho era um braço armado, matando para defender a manutenção do poder, de certos interesses econômicos e políticos dos poderosos. Naquele momento, ele faz uma autocrítica, uma espécie de vingança embriagada”, registra o cineasta pernambucano.

Em cartaz no Cine Belas Artes, “King Kong en Assunción” é um road movie existencialista, em que o solitário personagem, já cansado de tanto matar, resolve que é hora de parar e retomar os poucos laços que lhe restam: uma filha que nunca conheceu. “Quando a gente está chegando numa fase da velhice, a vida lhe bate na cara”, destaca Cavalcante.

Longa recebeu os prêmios de melhor filme do júri oficial e do público no Festival de Gramado, no ano passado. Também foi agraciado com Kikitos na categoria de melhor ator trilha sonora

Colonização

O cineasta define o filme como “um grito poético, político e periférico sobre esse homem atormentado”, algoz e vítima de uma sociedade construída na base do ódio. “É vítima de disputas de terra, da questão agrária que até hoje nos assola. Na verdade, desde a nossa colonização violenta, nefasta e excludente se dizimou e vem se dizimando povos em busca de um lucro”.FOTOS ARTHOUSE/DIVULGAÇÃO

CAVALCANTE – Realizador pernambucano concebeu um road movie existencialista

 Nessa jornada em busca de redenção, Velho percorre estradas e lugares desérticos e abandonados. Cenário ideal para um homem carcomido por seu passado. “É uma estrada sem fim, que ele está condenado a vagar de forma errante”, afirma. A única paisagem que destoa é o deserto de sal na Bolívia, onde se dão as primeiras cenas do longa.

“Foi uma aventura fazer esse filme do ponto de vista da produção, realizá-lo com um baixo orçamento e equipe pequena. Ao mesmo tempo, (essa limitação) injetou uma relação de desafio, de cooperação, de uma integração muito grande da equipe, reunindo profissionais do Paraguai, da Bolívia e do Brasil”, assinala.

Elementos que ajudam a imprimir em “King Kong en Assunción”, segundo Cavalcante, um DNA genuinamente latino-americano, com “todo mundo pulsando numa mesma frequência, para cruzar essas fronteiras e percorrer esses caminhos muitas vezes de difícil acesso. O que permitiu que os lugares onde a gente andou entrassem no filme”.

Ator Andrade Júnior morreu antes de o filme ficar prontoDá para contar nos dedos o número de falas do Velho, interpretado por Andrade Júnior. Todos os dilemas dele são manifestados por uma narração na língua guarani, feita pela atriz paraguaia Ana Ivanova (de “Las Herederas”, melhor filme do Festival de Berlim de 2018). “A ideia foi colocar o guarani em primeiro plano, como uma voz onisciente e onipresente, que tudo sabe, que tudo vive que tudo vê, dialogando com o passado, o presente e o futuro e simbolizando a morte”, explica Camilo Cavalcante. O cineasta conta que havia escrito uma narração em primeira pessoa, na voz do Velho, como se fosse a consciência dele. Mudou de plano após as filmagens numa “América Latina periférica”, destacando a musicalidade da língua guarani. A escritora gaúcha Natália Borges Polesso, vencedora do prêmio Jabuti em 2016, foi a responsável por “poetizar” a narração a partir do texto de Cavalcante. “Ela transformou essas palavras em sentimento”, afirma. A transformação não parou por aí, com os escritos de Natália ganhando uma versão em guarani pelas mãos de Lilia Sosa. “Não diria que ele foi traduzido. Na verdade, foi adaptado. A forma de pensar, de construir frases, é muito diferente do guarani para o português”. Para Cavalcante, a narração amplifica as possibilidades de interpretação do filme, que, segundo ele, tem camadas visuais, sonoras e literárias muito fortes. “Isso leva você para outros lugares da narrativa, rompendo com uma certa linearidade”, destaca. Generosidade Entre os muitos prêmios que “King Kong en Assunción” recebeu está o de melhor ator para Andrade Júnior, que faleceu antes de o filme ficar pronto, em 2019. “Ele é uma figura grandiosa, generosa, um artista de alma”, elogia o realizador. Júnior foi quem deu a centelha para a história, após se encontrar com Cavalcante durante um festival de curtas-metragens, em 2007. “Ele fez uma performance e eu fiquei ali inquieto e curioso e comecei a pesquisar. Andrade foi a força motivadora maior desse filme”.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por