Zula lança podcast sobre experiências de privação de liberdade de meninas adolescentes

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
13/09/2021 às 07:13.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:51
 (GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO)

(GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO)

A cada ensaio aberto de “Banho de Sol”, apresentado em 2019, podia-se ver algumas adolescentes que, acompanhadas de agentes penitenciários e psicólogos, viviam na pele as mesmas sensações provocadas pela privação de liberdade estampadas no espetáculo da Zula Companhia de Teatro.

“Elas sempre ficavam para o bate-papo ao final da apresentação. Num dia, uma delas perguntou se iríamos fazer algo semelhante no São Jeronimo (centro socioeducativo onde estavam). Todas pediram, por favor, para fazermos o projeto lá. Esse pedido das meninas nos tocou profundamente”, lembra a atriz Talita Braga.

E assim foi feito. As quatro integrantes do Zula conseguiram autorização de um juiz da vara de infância para não só realizarem atividade de teatro dentro do Centro, como também levar as participantes para o palco. O que ninguém contava é que, uma semana após o início do projeto, a pandemia pôs todo mundo em isolamento.

É esse momento de “reinvenção”, nas palavras de Talita, que o podcast “Vozes Além dos Muros” busca mostrar. Com o primeiro episódio já disponível nas plataformas digitais, reflete “um material riquíssimo com a metodologia que precisou ser criada” para que as aulas pudessem chegar às garotas sem o contato presencial.

“Nossa ideia, antes da pandemia, era fazer um ano de oficinas de corpo, musicalidade e dramaturgia e, ao final, criar uma peça que seria apresentada em dois centros culturais e dois teatros. Nossa primeira ação foi apresentar ‘Banho de Sol’ no pátio. Uma semana depois, porém, todas as atividades foram suspensas”, lembra.

O jeito foi recorrer a um pen drive, já que a internet não era boa a ponto de sustentar aulas ao vivo, e criar um plano de aulas em  que as funções foram divididas com todos integrantes e colaboradores da Zula. “Um motorista do São Jerônimo pegava esse pen drive e passava para a diretora Érika Vinhal, que assistia as aulas junto com as meninas e gravava em seu celular os exercícios que a gente pedia para fazer”, registra.

Junto com as imagens, Érika colheu áudios  com recados das adolescentes com sugestões para as próximas aulas. “Ficamos assim até outubro de 2020, achando que uma hora tudo ia voltar. Foi aí que a ficha caiu. Entendemos que precisávamos propor um produto final desta trajetória”, recorda. Assim surgiram o podcast e o documentário “A Arte Como Possibilidade de Liberdade”.

Para Érika, o resultado de tanto esforço é emocionante. Hoje superintendente de atendimento ao adolescente na Secretaria de Justiça, ela destaca que as garotas fizeram cartas, radionovelas, peças, programas de TV e desenhos. “Elas abraçaram a proposta do projeto”,  afirma. Agora a intenção é espalhar a ideia para outras unidades do Estado.

“É uma construção que fica para o pós-pandemia, algo que conseguimos estruturar num projeto inovador e que teve um efeito bacana para as adolescentes, especialmente neste momento pandêmico”, analisa Érika. A felicidade só não é completa porque, devido à rotatividade no São Jerônimo, muitas participantes voltaram para as suas cidades, sem poderem ter retorno do trabalho feito.

Grupo criou peça após experiência em penitenciária feminina

“Banho de Sol” foi resultado de um trabalho de arte-educação ocorrido em 2016 e 2017, num complexo penitenciário de Belo Horizonte (o nome do local não pode ser divulgado), com 30 detentas que haviam cometido crimes considerados gravíssimos. “Na peça, é possível refletir sobre a crise do sistema prisional, o apagamento da realidade delas e o poder transformador da arte pela escuta, pelo afeto e pelo amor”, assinala Talita.

O trabalho de iniciação foi feito com alunas que não desfrutavam de nenhuma outra atividade no complexo, na época. “É muito difícil realizar um projeto de arte num lugar como esse. O teatro passou a ser a única atividade, a primeira atividade ofertada no setor. Finalizamos o projeto não porque a gente quisesse, mas porque o complexo disse que não cabia mais na rotina, não tinha mais horário para o teatro”, lembra.

Do lado de fora, a companhia passou a pensar como poderia processar experiência tão rica. “A gente viveu muita coisa, nos transformamos. Ficamos reverberando aqui, aquelas horas que passávamos, toda terça-feira, durante os banhos de sol. Lá dentro, elas perguntavam por que não faríamos uma peça, porque ninguém sabe o que acontece aqui. Aí montamos o primeiro espetáculo para falar desse encontro”, afirma.

Talita ressalta que os jogos teatrais levavam as detentas a lembrar quem eram. “Quando a mulher entra no cárcere, o sistema vai fazendo com que você se apague, sendo reduzida ao crime que cometeu. E o teatro traz uma retomada dessa subjetividade, ao lembrar quem elas eram antes de entrar ali, do que gostavam, que afeto tinham na vida, o que tinham para realizar depois de sair dali, além de frisar que aquilo que era um lugar de passagem”.

Para a construção do espetáculo, elas entenderam que não dariam conta sozinhas da história. “A dramaturgia da peça é uma aula de teatro. A gente faz uma espécie de jogo teatral com a plateia, convidando 14 mulheres para subirem n o palco e revivendo os exercícios. Com isso, revelando as nossas vivências lá dentro”, destrincha.

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