Um brasileiro com idade na casa dos 70 anos já passou por cerca de dez trocas de moeda. Já os que ainda estão na juventude só sabem pelos livros de história que houve um tempo em que a renda era queimada pelas baforadas do dragão da inflação. Desconhecem o desespero daqueles que recebiam os salários e iam depressa ao supermercado, pois em questão de horas o remarcador e sua maquininha reajustariam os preços. É uma geração que nasceu após o Plano Real, que conseguiu domar o ímpeto da fera, e que em 2014 faz aniversário de 20 anos.
Hoje, duas décadas depois do plano econômico lançado quando Itamar Franco ocupava a presidência e Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Fazenda, tanto descontrole – em 1993, um ano antes do Real, a escalada dos preços bateu 2.477,15% – parece até lenda. Mas não é.
Especialistas alertam para o fato de que a inflação não é um problema que já foi resolvido de uma vez por todas. E cobram que o atual governo abandonou – ou pelo menos afrouxou – as rédeas das metas inflacionárias que mantinham o dragão hibernado.
Ao longo de quase 20 anos do Plano Real, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acumulado desde julho de 1994 até o final de janeiro de 2014, foi de 347,50%. Assim, um produto que custava R$ 1 naquela época custaria hoje R$ 4,47 se fosse corrigido pela inflação.
É o caso, por exemplo, do frango. Produto mais emblemático do real, o quilo da ave, que em 1994 era vendido por R$ 1, agora está quase cinco vezes mais salgado.
O professor de economia da Fundação Getúlio Vargas/IBS Raul Duarte Neto usa uma nota de R$ 100 para explicar a desvalorização do dinheiro.
“É como se hoje essa mesma nota valesse só R$ 22,30”, diz ele, destacando que a inflação voltou a ser persistente, ainda que bem menos assustadora. “Considerando-se apenas de 2010 a 2013, o dragão avançou quase 25%, ameaçando os ganhos reais conquistados pelos trabalhadores após o controle inflacionário”, ressalta.
No limite
O vice-presidente do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), Fabrício Augusto de Oliveira, diz que já faz algum tempo que a inflação não converge para o centro da meta, estipulada em 4,5%. E cada vez mais aproxima-se do teto (6,5%).
“No ano passado, o IPCA fechou em 5,91%. Mas poderia ser 8%, se o governo não tivesse contido as tarifas públicas, como transporte e energia, e o preço da gasolina. Um índice desse nível acarretaria forte pressão por parte de sindicatos e trabalhadores. A verdade é que estamos andando no fio da navalha, o que é um risco. Perder o controle é temerário”, adverte.
O coordenador do Núcleo de Estudos de Políticas Monetárias da Faculdade Ibmec, professor Cláudio Shikida, lembra que, principalmente do início do Plano Real até o final do primeiro governo Lula, foi intensificada a entrada de brasileiros no mercado consumidor, muitos deles através do programa Bolsa Família.
“Essas pessoas não querem ter o ganho conquistado corroído pela inflação. É como dar um doce e quando elas o levam à boca, percebem que o tamanho do brigadeiro ficou menor”, compara.
Para o professor Raul, da FGV, o Brasil tem à frente uma prova de fogo. “Parece que finalmente o governo entendeu que não tem capacidade para fazer investimentos e partiu para as concessões de aeroportos e rodovias. A parceria com a iniciativa privada é a única saída”, acredita.
Falta de investimento eterniza o problema

Rodrigo Colares, pai de Gabriel, nascido após o Plano Real, relata: “Era uma corrida contra o tempo para o dinheiro não ir todo embora” (Foto: André Brant/Hoje em Dia)
Rodrigo Colares, pai de Gabriel, nascido após o Plano Real, relata: “Era uma corrida contra o tempo para o dinheiro não ir todo embora” (Foto: André Brant/Hoje em Dia)
Engenheiro por formação, Rodrigo Colares, 52, sentiu na pele os efeitos perversos da hiperinflação e dos anos de estagnação econômica. “Vivi uma época complicada. Era uma corrida contra o tempo para o dinheiro não ir todo embora”, rememora. Quando seu filho Gabriel Vieira Colares nasceu, já em 1995, um ano após o surgimento do real, vislumbrava para o menino uma vida financeira menos conturbada e mais oportunidades de educação e de trabalho. E a estabilidade econômica permitiu a ele, como a milhares de outras famílias brasileiras, dar muito mais à geração pós-plano.
“Até o real, foram diversos modelos fracassados. Até dinheiro da poupança foi confiscado (era Collor). A inflação era alta e o poder aquisitivo, baixo. Hoje, apesar dos aumentos recentes da inflação, e dos salários não estarem acompanhando a subida dos preços, a situação é bem mais confortável”, diz.
Enquanto Gabriel crescia, com o dragão sob controle, o pai pôde matriculá-lo em escola particular e curso de idiomas. Ele também tem mais acesso a eletroeletrônicos e lazer. Ganha até uma semanada, que aprendeu a administrar. E já percebeu que o cobertor anda ficando mais curto. “Há sete anos, com R$ 10 fazíamos a festa. Hoje, com R$ 50 fica difícil pagar o lanche da semana no colégio”, reclama.
Para economistas, o crônico problema brasileiro da inflação está, entre outros fatores, na incapacidade de o país produzir o suficiente para atender à demanda.
“O empresário trabalha com expectativa a longo prazo e, se não se sentir seguro, não colocará a cabeça a prêmio. Ninguém vai brincar de Tiradentes”, diz o professor de economia da FGV/IBS Raul Duarte.
Segundo ele, a aposta do governo era a de que, com o incentivo ao consumo, as empresas fossem aumentar os investimentos.
Só que o vai e vem da taxa de juros, a falta de investimentos em infraestrutura, a carga tributária e a burocracia inibem a expansão nos negócios. O vice-presidente do Corecon-MG, Fabrício Oliveira, ressalta ainda a necessidade do aperto do cinto fiscal.