
Jornadas extenuantes, falta de proteção social e remuneração baixa, que muitas vezes não cobre o custo da corrida, fazem parte do cotidiano dos motoristas de transporte de passageiros por aplicativo. Governo, plataformas e profissionais concordam que é preciso melhorar as condições de trabalho da categoria. A definição de regras para a atividade, porém, é complexa, e não tem consenso nem mesmo entre os trabalhadores do setor.
A questão está em análise no Congresso, que examina uma proposta elaborada pelo Executivo para regulamentar a atuação dos motoristas e sua relação com as plataformas. O PLP 12/2024, atualmente na Câmara dos Deputados, tem o objetivo garantir direitos trabalhistas e previdenciários aos condutores sem interferir na autonomia deles para escolher horários e jornadas de trabalho.
O texto, que não inclui entregadores por aplicativo nem motociclistas, é fruto de um acordo construído por um grupo de trabalho criado em maio de 2023, coordenado pelo Ministério do Trabalho e com a participação de representantes dos motoristas, das empresas e do Executivo. O grupo teve o acompanhamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Segundo o governo, a ideia é assegurar direitos como remuneração mínima, aposentadoria e outros benefícios previdenciários. Pelo texto, o motorista passa a ser enquadrado como “trabalhador autônomo por plataforma”. Não é reconhecido vínculo de emprego nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) entre os profissionais e as empresas dos aplicativos, consideradas "intermediadoras" do serviço.
Categoria crescente
A preocupação do governo em relação à categoria se justifica pela quantidade de pessoas trabalhando em aplicativos de transporte. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que, em 2022, o Brasil contava com 1,5 milhão de pessoas atuando por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços. Entre os motoristas de aplicativo, menos de um quarto contribuía para a Previdência Social (veja quadro abaixo).
Os dados também apontam alto grau de dependência dos motoristas e entregadores em relação às plataformas: 97,3% e 84,3%, respectivamente, afirmaram que é o aplicativo que determina o valor a ser recebido por cada tarefa executada; para 87,2% e 85,3%, respectivamente, é o aplicativo que determina os clientes a serem atendidos.
Já uma pesquisa realizada em 2024 pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sobre o perfil dos trabalhadores por aplicativos indica que atualmente há 2,2 milhões de pessoas atuando por meio de aplicativos de transporte. O levantamento foi encomendado pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), entidade que reúne as maiores plataformas em operação no país.
Segundo a Uber, que iniciou suas operações no país em 2014, cerca de 5 milhões de brasileiros geraram renda por meio da plataforma nos últimos dez anos. Hoje há 1,4 milhão de registrados, o que faz do Brasil o país com o maior número de motoristas parceiros no mundo, diz a empresa. A Uber afirmou ter repassado mais de R$ 140 bilhões a motoristas e entregadores parceiros, por mais de 11 bilhões de viagens realizadas no Brasil desde 2014.
Demandas dos trabalhadores
Para o presidente do Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transportes Terrestres Intermunicipal do Estado de São Paulo, Leandro Cruz, as empresas de transporte não têm interesse na regularização da categoria. Cruz, que integrou o grupo de trabalho, afirmou que os motoristas estão há dez anos sem reajuste nos valores das corridas.
— Sem regulamentação, fica uma empresa disputando com a outra para ter mais clientes. E o que acontece? Elas vão baixar a tarifa para os clientes. E o prejudicado maior é o trabalhador. Então, a empresa nunca briga pelo trabalhador. Ele briga pelos clientes, porque não tem regulação — disse.
Para Cruz, o PLP 12/2024 é positivo para a categoria. Ele apontou, porém, que a grande maioria dos motoristas ainda não compreenderam a proposta de regulação prevista no texto, por isso se posicionam contrários ao projeto.
Segundo o sindicalista, muitos trabalhadores acreditam que o valor especificado no texto — R$ 32,10 por hora trabalhada, considerando apenas o período das corridas, e não aquele “em espera” — será o teto da remuneração. Cruz explicou que o grupo de trabalho definiu esse valor com base no cálculo da contribuição previdenciária e enfatizou que se trata da tarifa mínima. De acordo com o presidente do sindicato, o trabalhador será remunerado de acordo com o tempo trabalhado e a distância percorrida, sendo que os valores finais ainda serão discutidos com as empresas por meio de acordos e convenções coletivas.
O sindicato também pede que o Congresso Nacional altere o texto para incluir reivindicações dos motoristas. Cruz defende que a categoria tenha direito a 30 dias de férias remuneradas, pagamento de horas extras após 8 horas de trabalho, adicional noturno de 30% e adicional de 100% para trabalho aos finais de semana e feriados, além de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na compra de veículos novos.
Desacordo
Há divergências quanto ao projeto dentro da própria categoria. O presidente da Federação dos Motoristas por Aplicativos do Brasil, Paulo Xavier Junior, afirmou que a proposta não atende às necessidades de uma regulação justa. Para ele, é fundamental que a regulamentação cubra todos os custos (combustível, manutenção do veículo, celular, seguro etc) e assegure ganhos reais ao motorista.
— As plataformas são predatórias. Elas têm um algoritmo que domina todas as informações. O motorista, muitas vezes, aceita uma corrida em cinco segundos e não tem condição de fazer uma análise correta para saber se ela é viável ou não. Na maioria das vezes, faz a corrida com prejuízo. O resultado disso são carros sucateados e trabalhadores com problemas de saúde e financeiros. Esse PLP não tem nada que garanta ao motorista um ganho real.
Xavier destacou que os valores pagos aos motoristas devem considerar o quilômetro rodado e o tempo trabalhado, mas ressaltou que é preciso levar em conta as particularidades regionais, sem impor uma tarifa única em todo o país. Ele também criticou a participação dos sindicatos no grupo de trabalho, afirmando que as associações de motoristas foram excluídas da discussão.
A federação ainda defende a aprovação de um texto alternativo ao proposto pelo governo. Segundo Xavier, o PL 536/2024, do deputado Daniel Agrobom (PL-GO), foi elaborado em parceria com motoristas de todo o país e contempla melhor as necessidades da categoria.
Para Manoel Scooby, líder do movimento dos motoristas por aplicativos do Distrito Federal, o maior erro do projeto é considerar como hora trabalhada apenas o tempo em que o motorista está em viagem. Em sua opinião, os trabalhadores também deveriam ser remunerados pelo tempo em que ficam à disposição das empresas. Scooby, que atua nas plataformas de mobilidade desde 2016, afirmou trabalhar até 14 horas por dia para conseguir sustentar sua família e arcar com os custos de manutenção do veículo. Ele também disse não concordar com o tratamento dado aos motoristas pelas plataformas e ressaltou falta de suporte à categoria.
— Tem motorista que rodou a noite inteira pela Uber e no final da madrugada sofreu um acidente, foi para o hospital e veio a óbito. Deixou a esposa com quatro filhos. Não teve amparo nenhum dos aplicativos, porque na hora do acidente, ele não estava conectado. Ele não estava em viagem, mas ele tinha feito mais de 30 viagens naquela noite. Então, isso é uma injustiça.
Pontos de alerta
O coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações do Trabalho, Renan Bernardi Kalil, afirmou que o Ministério Público do Trabalho (MPT) identificou três pontos de alerta no texto apresentado pelo governo. O procurador destacou que o projeto classifica as empresas de transporte como meras intermediadoras entre clientes e motoristas, quando, na verdade, deveriam ser caracterizadas como empresas que desenvolvem uma atividade econômica relacionada ao serviço que oferecem no mercado.
— Isso é fundamental para que a gente consiga atribuir as diversas responsabilidades que elas vão ter. Estamos falando de responsabilidade tributária e responsabilidade nos campos trabalhista e do direito do consumidor. Apesar de algumas empresas se caracterizarem em alguns espaços como empresas de intermediação ou tecnologia, como elas vêm fazendo na Receita Federal para recolher uma quantidade menor de impostos, elas se registram no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) como empresas de transporte.
Outro ponto levantado pelo MPT é a forma como o projeto caracteriza o trabalhador autônomo. O procurador pontuou que não é possível classificar os motoristas como autônomos apenas pelo fato de poderem escolher seus dias e horários de trabalho. Kalil ressaltou que esses trabalhadores não têm liberdade para definir os preços de suas corridas e ainda podem ser punidos ou até banidos pela plataforma.
— A gente vivencia, no dia a dia, uma série de controles que essas empresas realizam. Dizer que apenas e tão somente a possibilidade de o trabalhador poder definir o momento em que ele se conecta para definir essa atividade como autônoma é extremamente insuficiente. Mesmo os trabalhadores que gostariam de ser classificados como autônomos entendem que a forma como a atividade é realizada hoje não se caracteriza como trabalho autônomo. O que esses trabalhadores gostariam de ter é uma efetiva liberdade para desempenhar essa atividade, o que eles não encontram hoje em dia.
O procurador também expressou preocupação com um artigo do projeto que, segundo ele, impossibilita o reconhecimento da relação de emprego. Segundo Kalil, o trecho estabelece uma série de elementos que não caracterizariam meios de controle para enquadrar a relação entre motorista e plataforma como uma relação de emprego.
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