No centro de São Paulo, casal é sequestrado e colocado no porta-malas de um automóvel. Sem se entenderem em nenhum momento, eles passam horas incertos sobre o destino e o que os criminosos pretendem fazer.
Muitos críticos viram em “Dora e Gabriel”, em cartaz nos cinemas, uma metáfora do Brasil atual, retrato de um país sem direção e surreal. O curioso é que o longa foi escrito bem antes de Jair Bolsonaro vencer a eleição.
“Quando escrevi o roteiro, nem sabia quem era o cara. O que está acontecendo é que a História está sendo muito caprichosa, com o filme saindo num momento em que essa leitura cabe perfeitamente”, afirma Ugo Giorgetti.
Para o diretor, a narrativa apontava para uma vida qualquer que pode ter seus rumos alterados inesperadamente. “Não temos o controle de nada. Não sabemos o que vai acontecer daqui a cinco minutos”, assinala.
Com o cruzamento entre ficção e realidade, o filme ganhou um significado imprevisto. “É um retrato do Brasil, de um país em que não sabemos para onde vai, embora não tenha sido essa a minha intenção”, concorda.
A trama está relacionada a um tema muito caro a Giorgetti: a vida como uma grande e ingrata espera. Em “Sábado” (1994), por exemplo, a narrativa foca os moradores de um edifício decadente presos no elevador.
“A gente decide muito pouco sobre a nossa vida. Quando você faz um somatório, percebe que decidiu sobre trivialidades. Coisas que transformam a sua vida, você tem muito pouco ou nenhum poder para decidir”, analisa.
Esse pensamento, destaca o cineasta, tem a ver com uma noção de vida muito familiar na metade do século passado, a partir de nomes como Jean-Paul Sartre e Dino Buzatti, autor de “O Deserto dos Tártaros”.
No livro de Buzatti, um soldado é chamado para ficar de sentinela num forte, avisado de que os tártaros poderiam invadir a cidade a qualquer momento. “Ele espera a ponto de ficar velho, enfrentando um perigo que nunca vem”.
Para o diretor veterano, essa é a síntese de “Dora e Gabriel” – os protagonistas são jogados na história, sozinhos e incapazes de decidirem, batalhando contra obstáculos que não têm a menor ideia do que sejam.
“Esse filme é quase uma fábula, uma fantasia. Agora que eu sinto que estou no fim da minha carreira, vejo que fui abandonando gradativamente o neorrealismo até assumir essa vertente”, avalia Giorgetti.