Peça teatral com Yara de Novaes adota linguagem dos games

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
08/01/2021 às 07:45.
Atualizado em 05/12/2021 às 03:52
 (MURILO BASSO/DIVULGAÇÃO)

(MURILO BASSO/DIVULGAÇÃO)

No lugar de espectador, jogador. A palavra não é exagerada em relação ao jogo teatral que a diretora e atriz mineira Yara de Novaes criou para conceber “(Des) memória”, peça que ficará disponível a partir deste domingo no site do projeto Teatro em Movimento. A montagem foi estruturada em cima da linguagem dos games, em que o público participa das decisões.

“Podemos dizer que será um jogador-espectador, já que o jogo eletrônico também tem uma parte contemplativa. A gameficação da peça não é de um jogo clássico, com objetivos e fases a serem cumpridas”, explica Yara. A missão do público, se podemos dizer assim, será chegar à bisavô da diretora, trazendo à tona uma história de apagamento.

Ao receber a proposta de fazer um espetáculo concebido especialmente para internet, Yara resgatou uma descoberta familiar recente. Numa caixa recebida do pai dela, jamais aberta, ela encontrou a foto de uma senhora negra, vestida como sinhá, datada do final do século 19. Era a sua bisavó. “Tirei o véu de uma história que não conhecia”, assinala.

Este encontro com um passado desconhecido teve um efeito de cura para a artista. “Se ela tivesse um lugar de relevância na família, certamente teríamos enfrentado esta política eugenista que o Brasil viveu e vive. Pode parecer exagero, mas, desde que eu a encontrei, passei a ter uma sensação de amparo, de ficar mais forte”.

Para Yara, “(Des) memórias” é um jogo que suscitará no jogador-espectador a vontade de procurar saber mais sobre a sua própria história. “A reação das pessoas nos testes foi bonita. Elas ficaram emocionadas. Algumas disseram que pediram à mãe uma foto da bisavó e outras até fizeram testes de DNA. São coisas que geram uma ação”, comemora.

Ela também celebra o resultado do primeiro encontro “entre o pessoal do teatro e do game”, representado pela Abstracto Studio, especializado em experiências interativas. “Fizemos tudo isso num tempo recorde. Se a gente não conseguiu uma gameficação um pouco maior foi por esta falta de tempo. E também porque foi a primeira vez que houve este encontro”.

A ideia desta junção de forças surgiu após Yara perceber o papel do audiovisual no momento de pandemia, “vindo nos salvar num instante em que o teatro não poderia acontecer em sua forma mais plena”. Apesar desta “mão estendida”, a resposta do público é mais contemplativa do que participativa, segundo ela.

“Você pode sair da frente da tela e ir tomar seu café. No caso do game, não. É preciso ter a presença que normalmente se tem no teatro. Se ele não estiver ali, o jogo não acontece. O espetáculo não acontece se não houver plateia. E, no jogo, eu vou precisar de fato deles, que cliquem as coisas para que a história se desenvolva”, explica.

Com esta maior interatividade, observa, o jogo gera no espectador uma certa imersão. “O jogador é meu interlocutor. Para ele que eu falo, que faço meus comentários e peço ajuda. É como se ele estivesse ao meu lado na mesa de trabalho, de frente para o computador”, detalha Yara. 

Peça é dividida em nove partes

Assistente de direção e um dos atores da peça, Lucas Costa ressalta que “(Des) memória” não conta uma história de maneira  linear. “Há um enredo em que o jogador-espectador está numa madrugada, tomando o lugar da Yara. Ela está com insônia, pensando sobre sua bisavó, que era uma mulher negra e foi escondida da família dela”, destaca.

No momento mais onírico da peça, Costa recita o poema “Emparedado”, de Cruz e Sousa, lembrado por Yara quando ela soube da existência de sua bisavó. “Na época, Yara passou a pesquisar poemas, arte negra e afrofuturismo, além do passado da bisavó”.

Ele explica que “(Des) memória” é composta por nove partes e, como num jogo, o jogador-espectador vai avançando por suas fases. “Cada fase é diferente. Uma é mais auditiva, outra em que se olhará o mapa de Mariana, onde a bisavó viveu. Cada parte pretende construir uma imagem de quem poderia ter sido dona Leopoldina”, detalha.

A peça, sublinha, aponta para um processo de apagamento histórico de pessoas negras em nossa sociedade. “Infelizmente, no Brasil não conhecemos a nossa própria história e a peça mostra como uma pessoa branca, da geração atual, reage em relação a isso”. 

Ele registra que este processo vem desde a vinda de negros escravizados da África, em que seus documentos foram destruídos pelos captores. “O único documento que recebem é a partir do momento em que são escravizados, em que mudam o nome e passam a ter raça. Até mesmo a palavra negro é uma invenção dos brancos ”, observa.

O rompimento da barragem em Mariana, em 2015, também é lembrado. A bisavó de Yara teria vivido na cidade e a relação com a tragédia se dá pela ideia de apagamento histórico, que também atinge os moradores do subdistrito de Bento Rodrigues, principal afetado pelos rejeitos.

“Era um lugar em que as pessoas viviam da  terra, do que produziam, e que é totalmente destruída. Elas foram deslocadas para a cidade grande, onde não terão espaço para produzirem o que vão comer, sendo obrigadas a terem outro modo de vida”, analisa.

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