(Cecília Pederzoli)
Às vezes, basta senti-lo uma única vez para atiçar um enxame de recordações. Sensações como desejo, repulsa ou contentamento vêm como consequência desta experimentação. Há anos, a ciência busca explicar o motivo de estarem as memórias e os comportamentos tão atrelados aos cheiros.
Apesar das evidências, ainda não há estudo que desenrole com exatidão este mistério guardado no cérebro dos humanos e também dos animais. Uma pesquisa em andamento na Universidade de Harvard (EUA), no entanto, se cercou de indícios e está cada vez mais próxima de desvendar o segredo. Os dados já colhidos foram apresentados em um seminário realizado na UFMG, em agosto.
Colaboradora do professor Venkatesh Murthy, autor do estudo, Grace Schennato Pereira Moraes, do Núcleo de Neurociências do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, explica que os cheiros remetem a diferentes lembranças e são capazes de direcionar o comportamento humano, despertando sentimentos bons ou ruins.
A pesquisa foi feita com camundongos, mas se aplica ao homem por terem, os dois, um circuito olfativo similar. Segundo Grace, o estudo aponta uma relação entre a ativação de circuitos olfativos e comportamentos guiados pelo cheiro.
Dentre os desafios para compreender melhor porque o fenômeno existe, estão: como os odores são representados no cérebro, e de que forma podem estabelecer memórias tão fortes e duradouras?
Segundo Grace, por enquanto, sabe-se que a serotonina (importante modulador de humor), quando liberada no bulbo olfatório (também localizado no cérebro), afeta a representação neural dos odores. “Esta descoberta abre a possibilidade de desenvolvermos novos estudos que possam investigar a relevância emocional estabelecida entre cheiros e memórias”, esclarece a professora.
Há cerca de seis anos, a bailarina Nicolle Vieira, 30, se viu instigada a conhecer mais a sua origem. Isso porque, numa viagem realizada por sua avó à Polônia, a família descobriu ter raízes judaicas. Desde então, a curiosidade sobre o período da Segunda Guerra, que já era grande, ficou ainda maior e culminou no espetáculo “Perfume” (foto acima), que estreou mês passado, no Galpão Cine Horto.
No solo, Nicolle é uma vendedora de rosas perseguida pelo regime nazista que, apesar das torturas e do cheiro da morte sempre iminente, permaneceria lutando enquanto pudesse sentir o perfume das flores.
Para montar “Perfume”, a bailarina desbravou uma intensa pesquisa, com direito a visita ao campo de concentração nazista Auschwitz, ao sul da Polônia, em 2012. “O que mais me chamou a atenção foi ver rosas dentro dos vagões que transportavam prisioneiros, no paredão de fuzilamento, ao redor dos túmulos, na câmera de gás... Elas estavam por toda parte”, recorda.
A partir de então, aquele perfume, comumente marcado por trazer lembranças suaves, ganhou novo significado para Nicolle. “Durante a visita sentia aquele cheiro de rosas e pensava quantas delas já teriam sido colocadas em memória das vítimas do holocausto”.
Agora, mesmo quilômetros distante e três anos depois da viagem, o aroma das flores continua a trazer, além de reminiscências, sentimentos profundos. “Ao mesmo tempo que me remete à vida, já que aquelas vítimas do nazismo lutavam para sobreviver, o cheiro é símbolo de sofrimento, miséria e morte”, afirma.
No setor de perfumaria há oito anos, Danielle Barbizan, 34, gerente olfativa da Natura, explica que somente uma fragrância de perfume pode conter de 70 a 300 cheiros. O mais surpreendente, no entanto, é que os perfumistas têm à disposição 2.500 aromas e, mesmo assim, sabem distinguir cada um deles. “Os perfumistas têm estes cheiros memorizados e não precisam sentir todos eles para eleger aqueles que vão compor a fragrância”, frisa.
De acordo com Danielle, isto acontece porque os cheiros e as lembranças são decodificados no mesmo lugar no cérebro. “É por isto que, quando passam por alguma situação, as pessoas guardam o cheiro presente naquele momento. É uma questão de sobrevivência também, pois, inconscientemente, pensamos que, ao sentir determinado cheiro, vamos ficar felizes ou sofrer”, explica.
Danielle destaca ainda que os aromas podem, além de levantar recordações, trazer sensações. “O algodão não tem cheiro, mas, quando pensamos nele, nos dá uma sensação de suavidade, fluidez, leveza, acolhimento... Foi pensando nisto que criamos uma composição aromática que trabalhasse nas pessoas a memória do algodão”, exemplifica.
Apesar da experiência, adquirida nos 46 anos de fundação, por ser, desde a origem, focada na natureza, a equipe da Natura se viu rodeada por um grande desafio recentemente. “‘Luna’ foi o primeiro projeto a trabalhar no território da sensualidade. Demorou mais de dois anos para conseguirmos chegar à fragrância”, conta Danielle.
Em busca da fragrância que mais transmitisse o conceito, as mulheres e também os homens foram ouvidos e deram a sua opinião sobre o que consideram sensual. Tanto desafio se deu, conforme explica a gerente, porque a memória olfativa é construída de maneira bastante individual. “Por isto, é muito difícil um aroma agradar a todos”, completa.
Há exatos 25 anos, o mundo ganhou um museu para guardar as fragrâncias dos perfumes. O local fica em Versalhes, na França, e leva o nome de Osmothèque (de “osme” = cheiro e “theke” = armazenamento). Conforme a instituição, trata-se de um lugar único, dedicado à memória dos cheiros que identifica e que reúne perfumes para que não sejam perdidos pelo tempo.
Por meio das conferências olfativas (cerca de 150 por ano) produzidas e de artigos publicados no blog do museu, as pessoas podem aprofundar os conhecimentos e, quem sabe, descobrir um aroma jamais sentido antes.
O aroma do mato já foi inspiração para a produção cultural. O artista Ivan Vilela, por exemplo, compôs a ópera caipira “Cheiro de Mato e de Chão”, baseada no libreto do poeta Jehovah Amaral. A peça foi desenvolvida durante o mestrado que fez em Composição, há mais de 20 anos, quando trabalhou com a fusão de linguagens musicais. Já Fátima Guedes compôs “Cheiro de Mato”, que fala da natureza e da felicidade que é viver em um ambiente assim. “Ai, ai o mato, o cheiro, o céu”, diz um trecho. Lucia Turnbull emplacou, nos anos 80, “Aroma”, de Gilberto Gil, que fala do odor da pitanga, da manga...
Um perfume pode marcar a vida das pessoas. Mais ainda, as fragrâncias podem revelar traços de personalidades. Foi o que mostrou o canal pago GNT no programa “Perfumes da Vida”, exibido em 2012. A série, apresentada por Bel Wilker, desvendou o que anda por trás dos aromas e o motivo de eles ficarem tão marcados na memória. A cada episódio, Bel recebia um convidado e mostrava o dia a dia de mulheres e homens de diferentes profissões que também compartilhavam das mesmas qualidades encontradas nas essências dos perfumes desvendados. Além disso, o programa trazia informações e curiosidades sobre a criação, fabricação e a história dos perfumes.
Imagine conseguir distinguir todos os cheiros? Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whishaw), no filme “Perfume – A História de um Assassino” (2007), baseado no livro de mesmo nome, não apenas consegue diferenciá-los, como também os sente ainda que esteja longe do local em que está. A trama começa em Paris, em 1738. Jean-Baptiste nasce em um mercado de peixe, onde a sua mãe (Birgit Minichmayr) trabalhava como vendedora. O protagonista é abandonado, mas seu choro faz com seja descoberto na feira. Sua mãe acaba sendo presa e condenada à morte e Jean-Baptiste, entregue aos cuidados de Madame Gaillard (Sian Thomas), que explora crianças órfãs. Passado alguns anos, ele descobre ter o dom incomum de diferenciar aromas e começa a trabalhar na perfumaria de Giuseppe Baldini (Dustin Hoffman). Instigado a conhecer todos os odores existentes, ele se destaca no trabalho e supera o próprio mestre. O problema é que Jean-Baptiste se volta para um caminho tortuoso e passa a querer capturar o cheiro das mulheres.