Premiado diretor Gabriel Villela explica uso do barroco e do circo em peças

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
08/11/2021 às 16:11.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:12
 (DIVULGAÇÃO)

(DIVULGAÇÃO)

Aos 62 anos, o diretor mineiro Gabriel Villela, um dos mais premiados do teatro brasileiro, contabiliza o tempo de vida necessário para levar aos palcos os textos que gostaria. “Teria que viver mais 62. Nasci fazendo teatro e vou morrer fazendo assim. Até a missa de sétimo dia estarei fazendo teatro”, diverte-se, ao explicar por que, diferentemente de alguns colegas, como Moacyr Góes, não se aventurou pelo audiovisual.

"Não é arrogância ou prepotência. Tenho muito a fazer ainda no teatro. Com 62 anos, não tenho mais a força dos 30, o que significa que não posso mais fazer duas ou três peças ao mesmo tempo. Dói um cadinho, dói a coluna, dói as pernas”, brinca Villela, imitando o sotaque mineiro. O Estado, por sinal, nunca deixou o trabalho dele, especialmente na utilização do barroco. E também das galinhas...

Como o barroco se manifesta no seu trabalho?
É mais no conjunto de ideias, sobre o homem barroco atordoado e com uma certa mão no peito de dor. Acho também que tem outra coisa que li uma vez, de um poeta mineiro, que diz que a floresta do cerrado mineiro é ao contrário, com a raiz estando no alto e topo na terra. Acho que eu sou um pouco assim. Eu nasci de cabeça para baixo. O que fiz foi pegar todos esses dados, já que o patrimônio mineiro do barroco é único no mundo. Já saí atrás de outros lugares, indo até Praga, que é uma cidade, por excelência, barroca. Ela é linda, deslumbrante, mas já é um outro acontecimento dentro do tema.

Saindo do barroco e indo para o circo, outra referência forte em seu trabalho. Qual é a sua história com essa arte?
(risos) O circo se instalava na minha cidade (Carmo do Rio Claro), na parte de baixo, e representou a minha primeira relação com as artes dramáticas, assistindo a alguns clássicos do circo-teatro, como “E o Céu Uniu Dois Corações”, “Coração Materno”, “Marcelino Pão e Vinho no Céu”, “Um Mundo Não me Quis” e “Cabocla Tereza”. São títulos que me relacionei mais de uma vez, como espectador. Eu me relacionei com os bastidores dos artistas e o circo nunca mais saiu de mim. Fiz escola de circo em São Paulo, com o José Wilson, paralelamente aos quatro anos de teatro na USP. Eu queria entender também a relação do picadeiro com o palco. Eu pratiquei essas experiências de picadeiro, especializando-me em chicote e trapézio.

Juntando barroco mineiro e circo, temos “Romeu e Julieta”, peça com o grupo Galpão que foi um divisor de águas em sua carreira, não é verdade?

“Romeu e Julieta” começou em Ouro Preto. Na faculdade, o Cacá Brandão nos levou para ver a restauração da Igreja de São Francisco de Assis. Não sou bom com datas, mas lembro que foi muito marcante. Entramos pela porta da frente, juntamente com vários professores da USP, e tivemos aulas sobre Aleijadinho, o pai dele, o Mestre Ataíde, além dos projetos que tornaram as igrejas únicas no mundo. Shakespeare é completamente barroco em sua escrita e nos seus contrastes. Na peça, há uma inversão de ideias, para se criar um impacto dramático.

E como foi o trabalho com o Galpão? Você que sugeriu que os integrantes aprendessem e incorporassem instrumentos musicais na peça?

Foi uma demanda natural do espetáculo. A gente queria fazer para a rua e, particularmente, eu os via muito musicais, a partir da ideia de mostrá-los cantando serestas brasileiras, com cada um puxando um instrumento. Foi algo bem espontâneo da parte deles essa relação com os instrumentos. O Chico (Pelúcio) já tocava saxofone. Foi especificamente para aquele espetáculo, mas depois eles se tornaram grandes musicistas.

A peça é um marco na sua trajetória?
Das duas partes, sim... Falando sério, até hoje não sei explicar o “Romeu e Julieta”. Na verdade, nós fomos tão simples. A ideia era fazer um espetáculo para ser apresentado no Vale do Jequitinhonha. Curiosamente, levou-se 18 anos até ele ir, de fato, ao Vale do Jequitinhonha. A gente era muito jovem e, quando o vento sopra, a gente vai com tudo. Foi uma avalanche, uma coisa que ninguém do Galpão e da equipe de criação pôde mensurar ou prever. Terminamos nos apresentando no Globe, teatro do Shakespeare, em Londres.

Com o Galpão, você fez ainda “Os Gigantes da Montanha”, de Luigi Pirandello, mesmo autor que você se debruça agora, com “Proto – Henrique IV, em cartaz no formato digital.
Nos textos de Pirandello, ele coloca os predicados inaugurais da obra dele e depois começa a criar um lugar de inexatidão, até que a gente percebe que aquilo tudo é inconveniente em relação ao que pensamos, variando e criando outros temas e jornadas de trabalho para o artista. Desdobra a fábula em outra fábula, e em outra fábula, até um ponto em que a gente já não sabe mais o que está se falando. Podemos até fazer uma interpretação daquela página em si, mas muitas vezes não dá liga. Pirandello cria personagens que engolem a gente, que engolem o homem, nos deixando sem oxigênio para poder pensar. Ele quer isso mesmo, enfiando uma turma inteira num quarto pequeno, escuro e asfixiante, apertando as paredes contra nós. Penso eu que, de uma forma poética, ele faz isso muito bem. Faz tão bem que o espetáculo atual, “Proto – Henrique IV”, põe o rei numa salinha de muita pressão. Eu às vezes olho para o ator que faz o rei, Chico Carvalho, e parece que ele está implorando para sair dali, com a voz do personagem obviamente. É muito trágico, em determinados aspectos. A gente aprendeu que a tragédia grega é a ausência de oxigênio, nos levando a trabalhar o ar no pulmão. O nosso querido Ernani Malleta diz uma coisa sensacional: “Ator não pode respirar”. Pirandello pede tempos assim, que são mortos e não psicologizados (sic), sem uma intenção de desenvolver algum discurso silencioso. É tempo, tempo para trocar o ar do pulmão, uma coisa mais fisiológica.

Você trabalha  com clássicos, mas sempre adicionando conceitos muito próprios. Onde está a sua marca em “Henrique IV”?
(pensando) Você faz perguntas que eu tenho que parar para pensar. (risos) Na verdade, grande parte da cenografia foi inspirada naqueles corpos embrulhados de Manaus (mortos no auge da pandemia). Há uma parede de fundo que é feita assim e um personagem  assassinado é, no final da peça, tirado de dentro de uma dessas sacolas. É bom dizer que estamos fazendo uma abordagem anterior ao espetáculo, com um ator e um coadjuvante, porque caímos na pandemia e na própria dificuldade de produção de arte no Brasil. As pessoas foram para casa guardar o arroz com feijão. Um momento de muita tristeza, mas também de sobriedade, de espera. Agora, com os índices mais baixos, estamos começando as primeiras experiências culturais. No nosso caso, estamos gravando o teatro. Não é um espetáculo pensado para a câmera, mas sim para um público anônimo, coletivo e que está ausente na plateia. O público, com certeza, vai voltar com muita fome de teatro e de cultura. É difícil, mas a gente sabe que uma grande parte da população brasileira não vive sem uma boa música, uma boa peça ou um bom Carnaval. Voltando à peça, a cortina de sacos é uma referência aos mortos das guerras de Henrique IV, mas busquei um pouquinho da tragédia de Manaus. Ali algo de muito trágico aconteceu.

Você trabalhou tanto com companhias teatrais, em dobradinhas que deram muito certo, quanto com atrizes consagradas como Beatriz Segall, Renata Sorrah, Marieta Severo e Maria Padilha...
Eu tenho para mim que a sofisticação do teatro brasileiro está em nomes femininos, em grandes mulheres que doaram a sua vida ao estudo e à forma de representação. Eu busquei, num momento possível da minha vida e delas, estar junto para que pudesse aprender um pouco essas medidas com as quais elas tangenciaram a arte, de forma tão delicada e sofisticada. O que não quer dizer que não trabalhei com atores. Eu fiz os figurinos e o cenário para Paulo Autran, em “Seis Personagens à Procura de um Autor” (baseado em Pirandello), e foi um aprendizado também. Foi uma aula magna do que é fazer teatro. Eu fui diretor da retomada do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) em São Paulo por três anos, quando tentei puxar para lá alguns nomes, sejam paulistanos ou não, como a Walderez de Barros, uma preciosidade que continua aí toda falante e faceira. Acho que a mulher libera melhor o conhecimento. Como foi no meu caso. Imagina, eu dirigi Maria Bethânia, aprendi a fazer teatro com ela. Bethânia abre a boca e é um teatro que sai. O Milton Nascimento me deu uma alegria inesquecível, ao mostrar que teatro é também festa. Dançamos e cantamos com ele em “Tambores de Minas”. Ele tem uma alma teatral, apesar da timidez crônica. Mas sabe das coisas, sendo um mestre nessa área.

Apesar de ter realizado alguns especiais, a televisão nunca lhe seduziu verdadeiramente, no caminho inverso de outros diretores teatrais. Por que?
Fiz pouco e, sobretudo, pelo dinheiro. Apesar de ser motivado por isso, eu tive uma ligação grande com os atores de teatro da TV, seja fazendo um trecho do “Criança Esperança”, seja fazendo a adaptação da “Rua da Amargura” com o Paulo José. Eu não gosto da linguagem televisiva. Embora reconheça casos teatrais feitos na TV, como a Viúva Porcina de “Roque Santeiro”. São textos que, normalmente, estão enraizados na nossa cultura. Não é que sou contra a linguagem; eu é que não me vejo nela. Acho que não tenho muito o que fazer dentro da televisão, assim como no cinema. Vou fazer 62 anos e, estive olhando outro dia, teria que viver mais 62 para fazer os textos de teatro que gostaria. Nasci fazendo teatro e vou morrer fazendo assim. Até a missa de sétimo dia estarei fazendo teatro (risos).


Como você explica a predileção por galinhas, presente de várias formas em suas peças?
(risos) Eu acho galinha um bicho muito engraçado, burro demais da conta. Ela quer enturmar, se entrosar, e ao mesmo tempo... Eu parei de apanhar do meu pai e da minha mãe, mas quem me bate hoje são as galinhas chocas. Eu ponho a mão ali embaixo para ver como está o ovo, mas levo cada bicada e esporada... Tenho uma admiração enorme pela capacidade que elas têm de ver o mundinho delas, sem reclamar de nada. Gosto de criá-las, desde o nascimento, quando são pintinhos. Gosto de galinhas-d’angola, que não têm nada de burras. Elas estão subindo e descendo, sempre em bandos, muito ocupadas. Você abre a janela e as vê passando e a impressão é de que estão correndo atrás de uma jiboia. Tem o fato mesmo que elas protegem a sua casa de escorpião, de cobra. Já vi elas brigarem, lá em casa, com uma cobra coral. Uma bicava aqui, outra bicava lá, saindo pedaços do bicho até a morte dele. E gosto de comer galinha também, como um bom mineiro. Uma parte a gente come e a outra a gente admira. (risos)

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por