‘Sítios espeleológicos fora das unidades de conservação estão ao deus-dará’, afirma especialista
Professor José Ayrton Labegalini fala sobre reconhecimento do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu como Patrimônio Mundial Natural da Humanidade e aponta os desafios da preservação

O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no Norte de Minas, acaba de ser reconhecido como Patrimônio Mundial Natural da Humanidade pela Unesco. A decisão histórica impulsiona não apenas a visibilidade da região – que abriga mais de 500 cavernas e arte rupestre com mais de 12 mil anos –, mas também fortalece o protagonismo brasileiro no cenário da espeleologia mundial.
A nova chancela coincide com a realização do 19º Congresso Internacional de Espeleologia, sediado pela primeira vez no Brasil, em Belo Horizonte. Para falar sobre esses marcos, o Hoje em Dia conversou com o professor José Ayrton Labegalini, referência na área, membro fundador da Sociedade Brasileira de Espeleologia e ex-presidente da União Internacional de Espeleologia (UIS). Ele participou diretamente do processo de reconhecimento do Peruaçu pela Unesco.
O senhor esteve envolvido no processo de reconhecimento do Parque do Peruaçu como Patrimônio Mundial Natural da Humanidade. Que fatores foram decisivos para a conquista do título?
Não é a Unesco que propõe, é o país que submete um bem, natural ou cultural, para ser reconhecido como Patrimônio da Humanidade. E, para isso, precisa justificar. No caso do Peruaçu, tudo começou em 2001, com a visita de um amigo meu da Nova Zelândia, consultor da Unesco. Quando ele conheceu a região, disse: “vocês precisam correr atrás disso e pleitear esse título”. Já se passaram 24 anos desde então. O lugar é de uma beleza fora do comum, fantástica. E o diferencial do Peruaçu é a sua história geológica. Caverna existe em muitos lugares do mundo, inclusive há outros patrimônios da humanidade cujo tema são cavernas, mas a formação do Peruaçu é única. Esse foi o principal argumento que usamos: a particularidade da formação geológica do parque.
Além do prestígio internacional, quais impactos concretos esse reconhecimento pode trazer para a região, Minas e para o Brasil?
Quem vai sentir o impacto primeiro é a microrregião. Por consequência, o Estado e o país. Esse título dá um destaque internacional, mas também gera uma obrigação legal: quem propôs foi o Brasil, então o governo federal tem que tomar conta de verdade, preservar o que está lá, proteger contra vandalismo, roubo, depredação. Isso vira um atrativo turístico internacional, que pode revolucionar a economia local.
Hoje, o aeroporto mais próximo é Montes Claros, a 200 km. Mas, certamente, em dez anos vai ter um aeroporto em Januária. Os prefeitos vão se movimentar para aproveitar essa chance. O turismo é uma indústria que movimenta milhões, emprega desde quem trabalha em faxina até quem organiza megaeventos. Vai continuar tendo agropecuária, claro, mas agora aparece essa outra oportunidade. E quem vai até lá, aproveita para conhecer também o São Francisco e outros bens naturais. Não vai só por um dia, mas passa uma semana.
Estudos indicam que o turismo pode crescer até 30% nos primeiros anos após a titulação. Como conciliar esse aumento de visitantes com a preservação ambiental e o respeito às comunidades locais?
A responsabilidade por conciliar o aumento do turismo com a preservação ambiental começa nos municípios, passa pelo Estado e chega à Federação. Quando conheci o Peruaçu, há 30 anos, era preciso dirigir por 250 km de estrada de terra após sair do aeroporto de Montes Claros. A travessia do rio São Francisco era feita de balsa. Hoje há ponte, asfalto quase até a porta do parque, hotéis e pousadas em Januária e Itacarambi, além de estrutura básica para receber visitantes. Ainda faltam mais guias, mas cada esfera de governo precisa fazer sua parte: os municípios devem incentivar o turismo, o Estado garantir acesso e infraestrutura, e a União estruturar o parque como um atrativo nacional de verdade.
A maioria dos parques nacionais brasileiros está abandonada: têm proteção legal no papel, mas não na prática. Os poucos que funcionam bem, como o Parque Nacional do Iguaçu ou a Serra da Capivara, contam com gestão terceirizada, via parcerias e fundações. Com o título da Unesco, o Peruaçu está com a faca e o queijo na mão. Acredito que os municípios vão investir em infraestrutura, o Estado deve apoiar e, principalmente, o governo federal tem o dever de proteger o território e garantir o funcionamento pleno do parque.
Esse crescimento pode ser uma oportunidade para valorizar os saberes locais?
Esses saberes já são valorizados, porque tudo está ligado à exploração da cultura, da culinária, dos costumes. Quando estive lá, em um evento de promoção do parque, percebi como há uma vivência popular intensa, cheia de conhecimentos que muita gente nem imagina. Basta ir ao mercado de Januária para ver isso. Estando com as pessoas certas, você descobre coisas impressionantes. É um outro ambiente, uma outra realidade. Quem é de Belo Horizonte, por exemplo, entra no Mercado Central e já sente essa diferença, imagine, então, em um lugar como aquele.
A região tem muito potencial para ser explorado: pesca no São Francisco, passeios de barco como nas capitais europeias que têm rio, valorização dos modos de vida locais. É uma oportunidade para todos.
O Parque abriga a “Perna de Bailarina”, maior estalactite do mundo, e pinturas rupestres com mais de 12 mil anos. O senhor acredita que o Brasil valoriza adequadamente seu patrimônio natural e arqueológico?
Foi no fim da década de 1980, início dos anos 1990, que alguém olhou para aquela estalactite gigante no Peruaçu e disse: “Parece uma bailarina”. A galeria tem mais de 100 metros de altura, e aquilo chamava muita atenção. Em uma visita posterior, levei alguns equipamentos e fizemos medições – naquela época não havia os recursos de hoje. Calculamos 28,9 metros e publicamos um artigo em nossa rede da Sociedade de Antropologia. O dado acabou indo parar no livro dos recordes, mas sem citar a fonte original. Depois, foi refeito com novos artigos, e hoje se fala em 26 ou 27 metros, o que depende da interpretação do ponto inicial da formação. Mas isso não é o mais importante. O que interessa mesmo é se o governo valoriza ou não o nosso patrimônio cultural e natural.
Na minha visão, há sim interesse, mas tudo depende muito de quem está à frente do processo. O patrimônio cultural envolve outros órgãos, é mais complexo, e muitas vezes lento. O Peruaçu tinha potencial para ser reconhecido como patrimônio natural e cultural, mas optamos por entrar apenas como natural, para acelerar o processo. Isso começou há cerca de cinco anos. Quando o responsável pelo processo faleceu, tudo parou. Depois, o Ministério do Meio Ambiente delegou o processo ao Ibama e, por envolver cavernas, ao Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV), vinculado ao ICMBio. E aí a coisa andou. Isso porque teve alguém com boa vontade e capacidade técnica: o diretor Jocy Brandão Cruz. Ele fez acontecer. Então, acredito que há interesse, sim, mas tudo depende das pessoas certas estarem no lugar certo.
Além do Peruaçu, quais outras regiões brasileiras merecem atenção na preservação espeleológica?
Olha, não é só na área espeleológica. Por exemplo, tem as cavernas de Goiás, no Parque Estadual de Terra Ronca, que são muito importantes e também merecem esse tipo de reconhecimento. Tem as cavernas do Petar, em São Paulo, próximas ao Paraná, que são raridades e também merecem o título de patrimônio. Além disso, há cavernas isoladas em outras regiões do país que também têm valor. Só que eu não saberia te dizer agora se existe algum outro bem natural envolvendo cavernas que já esteja na lista de intenções da Unesco. Cada país, ao propor um bem, apresenta uma lista prévia. Mas, sinceramente, não sei se temos outros sítios espeleológicos nessa lista hoje.
Tem muita caverna maravilhosa espalhada por aí, algumas pelo tamanho, outras pela importância arqueológica, biológica, ou pela raridade do que abrigam. Mas ainda temos poucos espeleólogos trabalhando de forma séria com espeleologia. Esse é um problema. Tem pouca gente realmente formada, com conhecimento e produzindo estudos sólidos na área.
O senhor já afirmou que o Brasil está no topo da espeleologia mundial. O que isso significa na prática?
Existem cavernas em todo o mundo, e tem espeleólogo em qualquer canto. Em 1965, foi fundada a União Internacional de Espeleologia, que hoje tem sede na Eslovênia e realiza congressos internacionais a cada quatro anos. O 19º Congresso Internacional, que acontece agora em Belo Horizonte, e também o 38º Congresso Brasileiro de Espeleologia. Junto a ele, realizamos a assembleia da entidade, onde os países interessados apresentam propostas para sediar o próximo congresso. Este ano, Romênia e Reino Unido são candidatos para 2029. O Brasil recebeu o congresso atual quase que por aclamação da comunidade internacional, especialmente em função do Peruaçu. Não fomos nós que corremos atrás, fomos praticamente convocados, um pedido internacional.
A coincidência com o reconhecimento do Peruaçu como Patrimônio da Humanidade, no dia 13, fez com que o evento ganhasse ainda mais destaque. Já estamos atualizando a programação com o novo título e incorporando o selo da Unesco. Além disso, organizamos 25 roteiros de expedições pós-congresso, que vão do Rio Grande do Sul à Amazônia. O primeiro roteiro a esgotar foi o de Pernambuco. Tudo isso coloca o Brasil no centro da espeleologia mundial. O 19º Congresso, sediado aqui, é o maior evento internacional da área nos últimos quatro anos, reunindo representantes de todos os países envolvidos com a ciência, a técnica e a cultura espeleológica. Daqui a quatro anos, o 20º Congresso repetirá esse papel global.
Sobre a proteção legal adequada, o que é preciso para avançar em termos de legislação ambiental?
O Brasil tem uma das melhores legislações ambientais do mundo. Isso foi conquistado ao longo do tempo, com avanços importantes como o de 1989, quando a nova Constituição passou a considerar as cavernas como patrimônio da União. Ou seja, se uma caverna está dentro de uma propriedade privada, ela não pertence ao dono da terra, é da União. E, para explorar uma caverna com alguma finalidade, o proprietário precisa apresentar um plano de manejo e ter esse plano aprovado pelo Governo Federal. Esse foi um avanço significativo na proteção do patrimônio espeleológico brasileiro.
Até cerca de cinco ou seis anos atrás, o ambientalismo era muito extremado, o que dificultava várias atividades econômicas, como a mineração. Por pressão do setor minerário, o governo assinou um decreto que relaxou a proteção. Essa mudança foi feita sem diálogo com a comunidade ambientalista, resultando em um modelo que hoje não agrada nem aos ambientalistas nem ao setor produtivo. A legislação ficou “meio enroscada”, insatisfatória para os dois lados. O governo é lento, e os lobbies com mais força acabam impondo suas pautas.
É preciso avaliar caso a caso. Algumas cavernas, por serem muito comuns, podem eventualmente ser sacrificadas em nome do desenvolvimento. Outras, que são raras e únicas, devem ser protegidas integralmente. Falta encontrar esse ponto de equilíbrio, com uma legislação ambiental que envolva tanto ambientalistas quanto mineradores e atenda ao interesse público com responsabilidade.
Como o senhor avalia a atuação do poder público na conservação dos sítios espeleológicos?
Aqueles sítios espeleológicos que estão dentro de unidades de conservação federal estão protegidos pelo Ibama e pelo SECAV. Mas mesmo nesses casos, falta muita coisa: faltam mais funcionários trabalhando nos parques, mais guarda-parques, mais equipamentos, mais veículos e formas eficazes de vigilância. Quase todos os parques carecem de estrutura adequada para garantir a conservação de forma efetiva.
Já os sítios que estão fora dessas unidades federais de conservação estão praticamente ao deus-dará. Antes das mudanças promovidas por decretos recentes, todas as cavernas do país eram protegidas pelo SECAV e outros órgãos, mesmo que não estivessem em parques. Não havia necessariamente alguém na porta da caverna, mas, ao se tomar conhecimento de alguma depredação, bastava uma denúncia para que providências fossem tomadas. Hoje, só as cavernas situadas dentro de parques nacionais mantêm esse nível de proteção mais rígido. As demais perderam esse respaldo.
De que forma ciência e educação podem contribuir para sensibilizar a população sobre a importância das cavernas e do carste?
Essa preocupação com a importância das cavernas e do carste ainda é muito restrita, especialmente no Brasil. Na Europa, o tema já é mais difundido, mas por aqui, poucas pessoas conhecem ou se interessam por ele. A própria palavra “espeleologia” ainda causa estranhamento. Se você não sabe o que é uma caverna, dificilmente vai se interessar em conhecer, muito menos em proteger. Foi pensando nisso que, em 2015, a União Internacional de Espeleologia propôs um movimento planetário para tornar as cavernas mais conhecidas pela população. Esse projeto acabou sendo oficializado em 2021, quando a ONU declarou o Ano Internacional das Cavernas e do Carste, com apoio formal da Unesco.
A partir disso, foram realizados milhares de eventos em diversos países, promovendo as cavernas em todas as áreas do conhecimento. A espeleologia é extremamente multidisciplinar. Qualquer pessoa, seja de qual área for, pode aplicar seu conhecimento à espeleologia. As áreas envolvidas vão desde geologia, arqueologia, paleontologia, etnologia, geografia, mineralogia, química, física, matemática, engenharia e, especialmente, biologia. Uma das áreas mais novas é a astroespeleologia, que conta com espeleólogos auxiliando agências espaciais como a NASA no estudo de possíveis habitats em cavernas de Marte, onde temperaturas extremas exigem abrigos naturais.
Mas para que isso tudo comece, é preciso investir na base. Em países como a Islândia, já existem conteúdos sobre cavernas no ensino fundamental. Aqui no Brasil, é raro encontrar esse tema na educação básica, quando muito, aparece como uma abordagem pontual em aulas de geografia. No entanto, há iniciativas importantes. Em municípios como Januária e Itacarambi, a expectativa é de que a partir do ano que vem já haja conteúdos curriculares sobre cavernas nos anos iniciais e finais do ensino fundamental. Isso ajuda a formar desde cedo uma consciência ambiental e patrimonial.
* Estagiária, sob supervisão de Renato Fonseca