ENTREVISTA

‘Não é só futebol’: técnica do Galo fala sobre esporte, projetos, sonhos e desafios

Letícia Lopes
@leticialopesou
Publicado em 09/04/2022 às 07:00.
Aos 39 anos, Lindsay já atuou como jogadora e na coordenação técnica de times femininos. Agora, no comando das Vingadoras, ela afirma: "Hoje, sou da Massa". (Foto: Bruno Sousa / Atlético)

Aos 39 anos, Lindsay já atuou como jogadora e na coordenação técnica de times femininos. Agora, no comando das Vingadoras, ela afirma: "Hoje, sou da Massa". (Foto: Bruno Sousa / Atlético)

A primeira vitória do Atlético no Campeonato Brasileiro A1 em 2022, primeiro ano do clube na elite nacional feminina, só veio na quinta rodada, sobre o Cruzeiro, no dia 6 de março, por 2 a 1. Porém, as conquistas de quem comanda esse time começaram há décadas, numa época em que Lindsay Camila, de 39 anos, escolheu o esporte como profissão. 

Ex-atleta, ela jogou no Brasil, na Espanha, em Portugal e na França, pendurando as chuteiras em 2006. Depois, foi auxiliar da Seleção Brasileira Sub-17 e do SC Terville. Em seguida, passou a integrar a comissão técnica da Ferroviária e, desde outubro de 2020, é treinadora do Galo. 

Com licença A da UEFA, foi a primeira técnica brasileira a conquistar a Copa Libertadores da América, pela Ferroviária.

Lindsay segue aplicando todas essa vivências no Galo desde que assumiu a equipe, sucedendo o técnico Hoffman. Mesmo com currículo extenso, a treinadora compartilhou com o Hoje em Dia dúvidas, questionamentos e desabafos a respeito da profissão.

Se, ao falarmos da modalidade do futebol feminino no Brasil já é desconcertante, Lindsay confirma que em Minas Gerais, mesmo sendo uma região do Sudeste, a situação ainda se complica. E para além das velhas (e necessárias) discussões sobre estrutura, financiamento e reconhecimento, trabalhar com futebol feminino mineiro envolve questões profundas, que têm a ver com o machismo, o social, planejamento e, acima de tudo, sonhos. 

Qual a principal diferença entre o futebol mineiro e o futebol paulista?
As federações. A Federação Paulista investe mais. Esses dias eu estava vendo números e constatei que o Campeonato Paulista é mais antigo do que o Brasileiro e se mantém até hoje. Eu cheguei aqui, tive cinco jogos (do Mineiro), dois antes da classificação, dois da semifinal e a final. Estamos em um Estado que tem dinheiro suficiente para melhorar isso. Lá em São Paulo, temos mais equipes, mas aqui, o amor pelo futebol é maior. 

Para você, qual seria o primeiro passo para essa melhora?
Em São Paulo, algumas prefeituras ajudam as equipes. Acho que poderíamos investir na base. Minas Gerais é um Estado que torce muito pelo futebol masculino. Eu vejo que é maior até do que em São Paulo. E lá, no feminino, a gente tem base, centro olímpico, muitas equipes com sub-20, sub-17, e aqui a maioria não tem. E isso é ruim para o Estado e as cidades. Aqui, não vejo bases tão consolidadas. Se mais pessoas tivessem interesse e vontade de investir, Minas estaria melhor do que São Paulo, pois aqui o amor pelo esporte é  muito maior. Como vamos fomentar o futebol aqui se não tem base? Tenho certeza de que em qualquer cidade de Minas que formos, existirão mais de 11 meninas querendo jogar futebol.

Diante da sua experiência múltipla, o que você traz para o futebol de Minas?
Tento sempre trazer algumas ideias e conversas. Nossa base está melhorando. Vamos começar com o sub-17, o sub-20, e posso estar agregando com meu conhecimento. Posso tentar com uma forma melhor de jogar. Mas a execução demora. 

Para exercer esta função, alinhada às suas habilidades, você se inspira em alguém? Entre homens e mulheres.
Em muitas pessoas. Muricy, Abel, Telê Santana... Muito no Luxemburgo, um cara muito inteligente, precisava se atualizar, se atualizou. Gosto muito do trabalho da Pia. O trabalho dela está sendo muito bem-feito e vai “dar bom” em muita coisa. Ela é minuciosa. Tivemos uma convocação em agosto de 2018, e ela assistia a todos os jogos. Eu até me sentia pressionada, pois estava ao lado da minha ídola. Ela é uma pessoa trabalhadora. 

Como é a Lindsay treinadora?
Sou uma pessoa profissional e minuciosa. Meu jogo é ofensivo, com ligações rápidas; é ser objetiva e tentar ao máximo “sufocar” o adversário. Às vezes, dá certo, às vezes não. Faz parte! Minha maneira e meu intuito de jogo são esses. Eu brinco muito, mas cobro muito. Temos que trazer isso do masculino. Vejo atletas do masculino que conseguem fazer isso de descontrair. 

Para atender ao projeto do Atlético, de montar um time vencedor, quais foram as principais dificuldades?
Em trazer meninas jogadoras para cá. Fui atrás de muitas. Muitas foram para times de menor expressão, para serem menos remuneradas, mas porque entendem a estrutura e o projeto das cidades. 

Como é ser uma treinadora do Atlético e qual a relação com a diretoria no sentido de criação e execução do projeto?
Eu tenho uma sorte muito grande em estar num time em que o presidente quis me ver diversas vezes. O Sérgio (Coelho) quis conversar comigo sobre a equipe feminina, sobre o trabalho, sobre as jogadoras. Onde já se viu o presidente do clube querer conversar com a equipe e querer saber mais? Isso para mim foi maravilhoso, mostra o que o clube quer. O Galo quer. O Galo está ajudando. É muito bom ter esse suporte, e desejo que mais clubes também tenham isso. 

Por que quando falamos de futebol feminino, as histórias de superação acabam se sobressaindo em relação às táticas?
Porque não temos laços, as estruturas estão melhorando agora. “Infelizmente” o futebol feminino é uma superação. Digo “infelizmente”, mas com orgulho. Há quanto tempo temos um campeonato Brasileiro neste formato? Desde 2017 apenas. O Brasil já era tricampeão enquanto nós éramos proibidas de jogar futebol. Isso é superação. Vou falar do Ipatinga, que vai jogar a série A3, e o masculino já jogou a Série A. Não estou julgando, mas será que os problemas são as estruturas? Sobre tática, eu tenho uma linha alta, porque meu ataque e meu meio precisam pressionar. Como minha última linha vai ficar lá atrás se meu meio e meu ataque estão pressionando? Vou deixar um espaço, e o adversário vai conseguir se aproveitar. Quando a gente fala de futebol europeu, é muito mais compactado. Aqui no Brasil, a gente vê a linha de defesa de uma equipe na intermediária adversária, a intermediária deles, mais de 50 ou 60 metros, e para mim é muita coisa. Para mim, quanto mais compactado, mais bonito e mais legal. 

O Hoffman, ex-treinador do Galo, muito criticado no início e elogiado depois pelo trabalho na última temporada, ficou marcado no Atlético. O que você traz da gestão dele para o Galo atual?
Infelizmente, nada. E falo infelizmente mesmo porque foi um trabalho bem-feito. Foi um elenco que ele montou. Quando nós ganhamos o Mineiro, me lembrei dele, porque foi um trabalho em que ele também fez parte. Quando acertei (com o Galo), teve um jogo dele no fim de semana, mas não assisti para “não usar os óculos de outra pessoa”. É ruim ter o olhar “contaminado” com algumas opiniões, você acaba não dando chances a uma atleta. Então assim, por incompatibilidades, trocamos o auxiliar e o preparador físico. Temos algumas atletas dele, como a Day e a Cotrim. Mas em relação à técnica e à gestão de jogo, nada permaneceu.

Dentro do futebol, qual sua maior meta?
Tenho o sonho de as pessoas reconhecerem o time da Lindsay. Quando a gente pensa em um técnico, pensa em um estilo de jogo. Quero deixar minha marca, ser conhecida com minha linha alta (risos). Perguntaram se eu gostaria de estar na Seleção, e eu digo que penso (em assumir a Seleção) daqui uns 15 ou 20 anos, se der certo. Estive lá e posso dizer que foi maravilhoso e muito mais do que eu imaginava. Porém, gosto dos domingos, da emoção, das viagens, dessa loucura que é o futebol. Meu objetivo é fazer um bom futebol, ter um time armado, física e taticamente, acima dos outros. Eu gosto de um time atlético.

Qual o plano com o Atlético para esta temporada?
Meu primeiro objetivo é continuar na A1. Se você pensar no ano passado, dos quatro times que subiram, três desceram. Para permanecer na A1, vamos trabalhar para a bola entrar. 

Para a bola entrar, além de muito treino e concentração, o que falta? 
Emocional equilibrado. As pessoas falam para mim que eu pareço muito dura, mas sou muito sentimental. Eu queria que nós, enquanto profissionais do esporte, tivéssemos mais apoio psicológico. No feminino e no masculino. Tem tanto homem sofrendo, e isso interfere no esporte. Sabe por que o time feminino não foi campeão ainda? Por causa do psicológico. No feminino, ainda temos mais espaço para falar sobre isso. Mas falta o tratamento, pois o futebol feminino é caro. Quando a gente conseguir nos auto sustentar (referindo-se ao fato de que a maior parte da verba do futebol feminino vem do masculino), vamos conseguir cobrar mais coisas, como apoio psicológico. Para mim, psicólogo é alguém necessário em uma competição. Futebol é sobre emoção.

No quesito saúde mental, como era a Lindsay jogadora de futebol?
Eu teria aproveitado bem mais as situações da minha vida se tivesse entrado para a terapia mais cedo. Eu era uma atleta muitas vezes segura; outras vezes, insegura. Tinha dia que o passe não dava certo de jeito nenhum, e aí tudo só piorava, nada ficava bem. 

Em jogos com mando do Atlético, alguns com torcida, como foi sua experiência em ter o contato com a Massa?
A Massa é linda. Espero que seja mais presente. Que tenhamos mais pessoas no estádio. O atleticano é apaixonado. Hoje eu sou atleticana, hoje sou da Massa. Me impressionou absurdamente o que a torcida fez na partida contra o Corinthians, me arrepiou. Saí do jogo arrepiada e me peguei pensando como seria o Mineirão lotado vendo os “caras” jogarem. Isso me dá prazer em estar trabalhando. A torcida atleticana é algo muito diferente do que eu já vi.

Mesmo que em minoria alarmante, hoje conseguimos pensar em técnicas mulheres. Qual o futuro das comissões técnicas de futebol se seguirmos por este caminho? Quais as dificuldades?
Temos mais referências. Estamos sendo mais referências. Neste ano, temos cinco no Campeonato Brasileiro, o que é um recorde. A gente vê uma conseguindo sucesso e pensa: “eu posso também”. Sendo referências, temos que ser corretas. Teremos mais mulheres e ex-atletas querendo ser técnicas. Mas, a partir do momento que eu desejo ser técnica, preciso trabalhar para fazer o curso, então acaba que é um círculo: para ter uma coisa, precisa ter outra. Passa pelo social. Não é acessível. Eu tive a sorte de não pagar pois estava na Seleção e ganhei uma bolsa. As federações e os clubes também devem incentivar. Deveria existir mais projetos da CBF, fundos e sindicatos para que mais mulheres façam cursos.

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