'Comprei carro, minha casa e reformei a da família', conta a judoca Rafaela Silva

Henrique André
hcarmo@hojeemdia.com.br
16/12/2016 às 17:43.
Atualizado em 15/11/2021 às 22:07

A medalha de ouro olímpica conquistada nos Jogos Rio-2016 mudou radicalmente a vida da judoca Rafaela Silva, de 24 anos, e fez, da filha da Cidade de Deus, uma das maiores favelas cariocas, exemplo para jovens que sonham com um futuro melhor.

Indicada pela Federação Internacional de Judô (FIJ), na última segunda, ao prêmio de melhor judoca do ano, a filha de Luiz Carlos e Zenilda Silva colhe os frutos das duas décadas de dedicação ao esporte.

Rafaela, inclusive, é a única brasileira da modalidade – entre homens e mulheres – a ter no currículo os títulos mundial, vencido em 2013, e olímpico, conquistado em agosto.
Em entrevista ao Hoje em Dia, realizada durante a sexta edição do Encontro Nacional de Editores, Colunistas, Repórteres e Blogueiros (Enecob), no Rio de Janeiro, a melhor judoca do país falou sobre a vida pós-Olimpíada.

Colhendo os louros da campanha histórica na categoria até 57 Kg, Rafa relata a mudança de comportamento da sociedade para com ela, conta como ajudou a família, fala como foi a reação das pessoas com seu relacionamento homo-afetivo e opina sobre a crise financeira no país e o que a mesma pode representar no esporte brasileiro.

Como está sua vida após a medalha de ouro na Olimpíada, não só em termos financeiros, mas também na questão do respeito das pessoas?

Mudou bastante. Antes, eu brincando nas ruas com meus amigos, de bermuda e chinelo, via as pessoas passando e levantando a janela do carro e olhando a gente desconfiado. Agora, por onde passo, todo mundo pede foto, abraço e comenta que o filho começou a praticar algum esporte. Este reconhecimento é bem bacana e pode incentivar as crianças.

Você pensa em ter um projeto social com a ajuda do poder público?

Recebi algumas propostas, mas sou muito jovem e para o judô eu ainda tenho pelo menos mais dois ciclos olímpicos. Por enquanto não estou pensando nisso, mas se quisesse ter aberto algum projeto social eu teria condições.

“Antes, eu brincando nas ruas com meus amigos, de bermuda e chinelo, via as pessoas passando e levantando a janela do carro e olhando a gente com desconfiança. Agora, por onde passo, todo mundo pede foto e abraço; alguns também falam que os filhos começaram a praticar algum tipo de esporte”

O país vive uma grave crise econômica e cortes nos patrocínios ao esporte devem acontecer. Isso te preocupa?

A gente só tem a agradecer às leis que estão nos ajudando. Vivenciei isso agora na Olimpíada, apenas eu e Sarinha (Sarah Menezes), campeãs olímpicas, tínhamos patrocínio pessoal. As outras, não. A crise apareceu, mas nossa conta continua chegando em casa. A gente espera que melhore, porque nossa vida não terminou após os Jogos. Estas dificuldades podem atrapalhar, e muito, a evolução do nosso esporte.AFP PHOTO / Toshifumi KITAMUR / N/A

Depois da medalha, apareceram novos patrocinadores te procurando?

Logo no término da Olimpíada entrei no processo de renovação com a Embratel, mas de patrocínio novo não apareceu nada ainda. Não mudou muito. Consigo me manter bem, mas se aparecerem mais oportunidades é claro que não vamos recusar. Minha família não tinha dinheiro nem para me dar uma bicicleta. Agora comprei meu carro, minha casa, reformei a dos meus pais. O esporte pode mudar a vida. Gostaria de passar para os jovens de comunidade, através da minha imagem, que não adianta ter pressa. Consegui realizar meu sonho 19 anos depois.

Você hoje tem uma relação diferente com as redes sociais. Após o constrangimento e as ofensas sofridas após o resultado ruim nos Jogos de Londres (2012), você conseguiu ter paz e, hoje, interage a todo instante em suas contas. Fale um pouco sobre esta nova realidade...

Mudou bastante. Antes eu não queria nem entrar nas minhas redes sociais, porque as pessoas agrediam a mim e à minha família. Agora, se eu coloco um boa tarde ou um bom dia, tenho 500 curtidas e pessoas me implorando para respondê-las. Antigamente, quando fazia o mesmo, só aparecia gente me agredindo. Eu respondo, brinco e troco carinho com quem me apoiou durante os Jogos.

“Nós vivemos pressionados o tempo inteiro. Funciono bem com isso e adoro competir aqui no Brasil. A gente, inclusive, levava uma caixinha de som para os treinos, com gritos a favor e contra, para chegar bem nos Jogos Olímpicos”

Após os Jogos, vemos que o espaço para o esporte olímpico diminuiu muito. Como você vê a cobertura da mídia neste período?

Durante os Jogos, todos os holofotes viram para nós. Eles sabem que o judô pode render medalhas. É complicado. Quando passa a Olimpíada, é só futebol, futebol, futebol. A gente sabe que não vai chegar nem perto até 2020. Estamos batalhando e conquistando nosso espaço e tendo a mesma moral dos homens. Antes não tínhamos nem uma campeã em Pan-Americanos; agora, das sete atletas da equipe, cinco tem medalhas em Mundiais e duas em Olimpíadas. Estamos conquistando nosso espaço e esperamos, por isso, que melhore cada vez mais.

Você acha que na Cidade de Deus, onde foi criada, podem surgir outras “Rafaelas”?

Não tenho muito contato com os jovens da Cidade de Deus. De vários atletas que começaram a treinar comigo, nem todos seguiram carreira. Vemos algumas meninas, da minha idade, com dois filhos e sem conseguir sustentá-los. Há meninos que vêm treinar com a gente e, de repente, minha mãe liga e conta que foram presos. Temos oportunidade, mas não são todos que querem agarrá-la. Assim fica difícil falar que tem muito talento e não tem oportunidade.

Os brasileiros têm a cultura de só valorizar que ganha medalha. Como você lidou e lida com isso?

A gente vive isso o tempo inteiro. Funciono bem sob pressão e adoro competir aqui no Brasil. Pra mim não atrapalha muito. No Campeonato Mundial, eu tinha 20 segundos para virar a luta. A arquibancada levantou e me ajudou a vencê-la. Na Olimpíada, tive quase nove minutos de luta. Estava cansada, mas as pessoas levantaram e me deram forças, colocando pressão nas adversárias. A gente levava uma caixinha de som para os treinos, com gritos a favor e contra, para chegar preparadas nos Jogos.

O ouro olímpico também te deu forças para ir a público e revelar ser homossexual?

Com certeza. A gente vê um ídolo assumindo alguma coisa, dois três vão falar mal, e o restante vai aceitar. Não sei se seria igual se fosse uma pessoa comum ou antes da medalha. Nunca postei nada em redes sociais e nunca expus isso ao público por conta de toda violência. Fui a um bloco de carnaval e vi um grupo de seis caras batendo num menino que estava dançando. Quando as pessoas souberam de mim, não foi porque eu contei. Cheguei na Vila Olímpica e vi em publicações. Mas não tenho problemas com isso; meus amigos e meus familiares sempre souberam.Henrique André

Após a entrevista ao Hoje em Dia, Rafaela recebeu o jornal que registrou sua conquista nos Jogos Rio-2016

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