Dia do Orgulho LGBTI: 'Maria' e 'Franga' são colocados na marca do pênalti pelo STJD

Alexandre Simões
27/06/2019 às 20:47.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:18

A semana começou no futebol mineiro com o atacante Alerrandro, do Atlético, provocando polêmica ao se referir a cruzeirenses como “Mariada” numa entrevista ao programa Bola Premiada, da Rádio Itatiaia. Fruto da inocência ou da falta de informação do garoto, a declaração do jogador atleticano, um verdadeiro produto do meio, é apenas mais um capítulo na parte mais cruel da maior rivalidade mineira: a homofobia, que é usada como “arma” por ambos os lados.

Duas semanas após o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, o Brasil vive o primeiro 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTI.

Em sua edição de 15 de junho o Hoje em Dia já destacava o impacto que a decisão do STF teria nos estádios de futebol. Um dia antes, a Seleção Brasileira estreou na Copa América, no Morumbi, em São Paulo, fazendo 3 a 0 na Bolívia, que teve vários tiros de meta do seu goleiro, Lampe, acompanhados pelo grito de: “bicha!”.

Punido várias vezes pela Fifa por essa atitude da sua torcida em jogos pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, que foi disputada na Rússia, o Brasil passará a ver seus clubes podendo viver essa situação.

Em entrevista ao Globoesporte.com, o presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Paulo César Salomão Filho, afirmou que enviará ofícios a clubes, federações e árbitros alertando sobre a mudança imposta pela decisão do STF.

“O tribunal está atento a essa questão. Em um primeiro momento, vamos exercer um papel pedagógico. O objetivo nunca foi e nunca será punir ninguém. E, sim, melhorar o espetáculo. O campo de futebol não é uma terra sem lei. Pelo contrário, é um lugar que tem de ser lúdico para que as pessoas possam se divertir e possam levar as suas famílias sem violência e atos discriminatórios e homofóbicos”, afirmou o presidente do STJD ao Globoesporte.com, em entrevista no último dia 19 de junho.

O sociólogo Maurício Murad, maior especialista brasileiro no estudo de torcidas de futebol, acredita que a homofobia pode diminuir nos estádios, mas não acredita que de forma significativa, pelo menos num primeiro momento.

“A decisão do STF tem de ser cumprida pelo STJD porque ele está inferior numa escala jurídica. E precisa acatar. Não é uma lei, mas até o Congresso legislar sobre o tema, tem o mesmo poder, por exemplo, da legislação sobre o racismo. Os clubes se preocupam em monitorar e tentar identificar quem comete atos racistas em seus jogos, pois podem ser punidos por isso, com perda de pontos, eliminações de competições e até rebaixamento. Com a homofobia acontecerá a mesma coisa”, afirma Murad.

Educação

O sociólogo revela ainda que apenas uma lei contra a homofobia está longe de ser o ideal: “Devemos pensar em educação. É sim importante criminalizar quem comete esses atos. Mas o correto é se pensar em algo a longo prazo, na formação do cidadão”.

Para ele, a forte presença da homofobia no futebol brasileiro não é um reflexo do grande número de mortes de LGBTIs e transssexuais no Brasil, mas é um indicativo importante de como o tema é grave no país.

“O Brasil é um país com uma cultura homofóbica muito forte. Não é por acaso que é o recordista em mortes de LGBTIs e transsexuais. E isso está no futebol justamente porque ainda se pensa por aqui que o homossexual é inferior”, completa Murad.

Por mais que o caráter inicial seja o educativo, como destaca o presidente do STJD, o futebol brasileiro já teve o Grêmio eliminado de uma Copa do Brasil pelo ato racista de uma torcedora. Num estado em que a homofobia é “arma” dos dois lados na maior rivalidade, que é entre atleticanos e cruzeirenses, os clubes e suas respectivas torcidas terão de mudar o rumo dessa disputa.

CBF multada novamente

A última punição sofrida pela Seleção Brasileira em razão de manifestações homofóbicas por parte dos torcedores foi divulgada nessa quinta-feira (27). A Conmebol multou a CBF em cerca de R$57 mil em razão os gritos de “bicha” direcionados o goleiro boliviano Lampe, sempre que ele ia cobrar tiros de meta, no jogo Brasil x Bolívia, no Morumbi, na abertura da Copa América.

A decisão não cabe recurso.

Minas

A homofobia entra no futebol mineiro na segundo metade dos anos 1960. A inauguração do Mineirão vem acompanhada pelo maior time da história do Cruzeiro. A equipe de Raul, Piazza, Natal, Dirceu Lopes e Tostão encantava pela qualidade do futebol, colecionava títulos mineiros e em 1966 desbancou o Santos, de Pelé, na Taça Brasil.

No período, Belo Horizonte experimentava o maior crescimento demográfico da sua história. Pode se afirmar, com base nos dados dos censos do IBGE, que entre 1966 e 1976, período em que a Raposa venceu nove de 11 estaduais e além da Taça Brasil levantou uma Copa Libertadores, a população da capital mineira dobrou.

E isso foi provocado principalmente pela chegada de novos habitantes, vindos do interior do Estado, mas que carregavam, graças ainda à chamada Era do Rádio, a influência futebolística de Rio de Janeiro ou São Paulo, dependendo da região de Minas.

Sem um time em Belo Horizonte, essas pessoas, em sua maioria, passaram a torcer para o Cruzeiro, que era o time da época. Este crescimento da torcida azul ganhou uma marca ao colunista Roberto Drummond escrever uma crônica dizendo que a nação cruzeirense crescia tanto que estava se transformando numa “China Azul”.

Uma “arma” atleticana contra essa situação foi a homofobia. É preciso pensar dentro da realidade dos anos 1960, 1970. O fato de o local destinado à torcida cruzeirense no Mineirão ficar na sombra transformou seus torcedores em “refrigerados”.

A cabeleira loira do goleiro Raul, que era um símbolo sexual na época e fez a torcida feminina crescer nos jogos do Cruzeiro, rendeu a ele o “apelido” de Vanderléa, uma das artistas mais badaladas da Jovem Guarda, um movimento musical que foi febre entre os jovens brasileiros nos anos 1960 e 1970.

Para os pais, era uma arma perfeita na hora de “convencer” o filho a não adotar o time da época, o Cruzeiro, pois era time de “veado”. Até alguns cronistas esportivos usavam da homofobia em crônicas.

“No futebol é comum se tentar combater o sucesso esportivo, aquele alcançado dentro de campo, usando a homofobia como arma”, afirma o sociólogo Maurício Murad.

Maria

Nos anos 1990, o movimento de torcidas organizadas explode no Brasil. E na disputa mineira, as pichações de Mafia Azul pela cidade tinham o F transformado em R, por integrantes da Galoucura, e viravam “Maria” Azul.

Assim nascia o “Maria”, numa década em que o Cruzeiro conquistou muitos títulos importantes e desequilibrou a disputa com o maior rival no que se refere a grandes conquistas. Mas levantar taças era pouco. E a resposta cruzeirense foi também carregada de homofobia. E os torcedores rivais passaram a ser “Franga” ou “Lourdinha”. Em 2010, quando o Atlético lança uma camisa de treinos rosa, o preconceito explode na rivalidade mineira, com os cruzeirenses indo ao delírio. Surgia o “Rosinha”.

Num jogo em que os dois perdem, historicamente o atleticano reconhece a superioridade esportiva cruzeirense quando usa a homofobia. O cruzeirense se iguala ao rival quando pega na mesma “arma”.

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