Era uma vez um raio: Usain Bolt se despede das pistas

Rodrigo Gini
Hoje em Dia - Belo Horizonte
10/08/2017 às 18:57.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:01
 (ANTONIN THUILLIER / AFP)

(ANTONIN THUILLIER / AFP)

Ele fez um raio cair várias vezes no mesmo lugar: o alto do pódio. Desafiou marcas e as reescreveu sempre com a impressão de que poderia ser ainda mais rápido. Espalhou carisma e simpatia pelo mundo fazendo com que as provas de velocidade do atletismo internacional deixassem de ser lembradas apenas por casos de doping e campeões forjados em laboratório. E amanhã, quando concluir sua participação fechando o revezamento 4x100m da Jamaica no Mundial de Atletismo de Londres, encerrará uma das mais impressionantes trajetórias da história do esporte.

Se a disputa ficará mais equilibrada e sem favoritos, perderá os sorrisos e o gesto característico de Usain St. Leo Bolt. Mais que um atleta, uma lenda, capaz de um feito que dificilmente será igualado na história olímpica: conquistou a medalha de ouro em todas as nove finais para as quais se classificou, as três últimas no Estádio Olímpico Nilton Santos, nos Jogos do Rio. Sempre fazendo a festa dos fotógrafos, cinegrafistas e torcedores com um estilo característico: a largada muitas vezes inferior à dos principais rivais, mas uma capacidade de recuperação sem precedentes, a ponto de muitas vezes cruzar a linha dando-se ao luxo de olhar para trás e se certificar do domínio.

Inhame
E pensar que o menino de Trelawny que gosta de creditar tamanha potência física à dieta à base de inhame dos tempos de infância quase se tornou lançador de críquete. Felizmente, a estatura e o porte fizeram com que um professor de educação física enxergasse nele potencial para mover a si próprio, e não só à bolinha, com velocidade fora do comum.

Ao longo de uma carreira já recheada de títulos nos tempos de juvenil e júnior, Bolt começou a derrubar conceitos das provas dos 100m e 200m rasos. Mostrou que não era necessária musculatura de fisiculturista ou altura de jóquei para bater recordes. Se o 1,96m seria na teoria uma barreira a mais à passagem do ar, muito treino e o cuidado com os detalhes fizeram com que se transformassem em virtude.

Um problema no tendão nos Jogos de Atenas-2004 o impediu de ir além das eliminatórias e tornar ainda mais impressionante seu retrospecto olímpico. Era apenas questão de tempo: antes de Pequim-2008, o mundo já havia sido apresentado ao raio. No Meeting de Nova York daquele ano, tornou-se o primeiro a correr os 100m rasos em 9s72 e se aproximou da melhor marca do mundo nos 200m.

Faria ainda melhor no Ninho do Pássaro, o palco das disputas dos Jogos na China. Na final dos 100m, fez uma corrida à parte e baixou o próprio recorde em três centésimos (9s69). E para quem imaginava que o esforço comprometesse seu desempenho nos 200m, repetiu a dose, com quase inacreditáveis 19s30. Ainda comandou o revezamento (que, no ano passado, acabou perdendo o ouro com o resultado positivo de Nesta Carter em uma nova análise do material antidoping).

Sem modéstia
Bolt se especializou em guardar seu melhor para as grandes ocasiões e foi assim que, no Mundial de Berlim-2009, voltou a dar espetáculo. Venceu a mais nobre prova do atletismo em 9s58 e, nos 200m, precisou de 19s19, sugerindo que a barreira dos 19 segundos, antes vista como inalcançável, poderia ficar para trás. Na Olimpíada de Londres, mais um triplete, desta vez sem superar os próprios recordes.

E outra faceta do multicampeão se revelaria: uma mais que justificada falta de modéstia. Se buscava se tornar lenda, acreditava já ter conseguido. “Sou o maior atleta vivo”, disse então, no que viria a ser o palco de sua despedida.

Mais um retorno (a Pequim, no Mundial de 2015, com ouro nos 100m, 200m e revezamento) e uma preparação marcada por contusões e raras aparições em competições marcou a trajetória até o Rio, com a certeza de que seria sua última Olimpíada. O público brasileiro teve o privilégio de testemunhar, em êxtase, a história do esporte ser novamente reescrita pelo jamaicano, capaz de apontar, no canadense Andre DeGrasse, um provável sucessor.

O adeus ficaria para o Mundial deste ano, sem os 200m – e nem mesmo o bronze nos 100m foi capaz de estragar a ocasião. Ao mesmo tempo em que vaiava o campeão Justin Gatlin, duas vezes flagrado usando substâncias proibidas, a torcida manifestava sua idolatria pelo raio. Problema, apenas um: as lendas não deveriam jamais pendurar as sapatilhas. 

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