Morando no Congo, Valdo relembra passagens por Minas Gerais e fala sobre racismo no futebol

Henrique André
12/07/2019 às 18:04.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:31
 (Congo Actuel)

(Congo Actuel)

Um dos últimos meias clássicos do futebol brasileiro, o catarinense Valdo Cândido de Oliveira Filho deixou saudade em torcedores de Cruzeiro e Atlético, clubes que defendeu em 1998 e 2001, respectivamente. Hoje, aos 55 anos, o “asilo”, como foi apelido ao chegar à Toca da Raposa, aos 35, auxilia na formação de atletas no Congo, país africano.

Peça fundamental na Seleção Brasileira que conquistou a Copa América de 1989, Valdo coleciona histórias no mundo da bola. Com a Amarelinha, inclusive, fez 49 partidas. Destaque também de Grêmio, Santos e Botafogo, ele brilhou na Europa por Benfica e Paris Saint Germain. 

Nesta entrevista ao Hoje em Dia, o ex-meia relembra a trajetória, fala da “aventura no Congo” e  destaca a passagem por Minas

Como o Valdo foi parar no Congo? Como tem sido a experiência no país? E em relação ao futebol? Qual seu grande desafio e como tem visto a evolução?
Minha vinda para o Congo foi por acaso. Eu estava trabalhando na França e tinha um amigo que conhecia o cara que organizava o Torneio da República. Então, fui chamado para participar desse torneio. Chegando aqui, falei que era treinador, e eles me propuseram a questão de eu tentar ajudar a organizar o futebol congolês. Falei que ia pensar, organizar o plano de trabalho e apresentar a eles. Se eles estivessem de acordo, a gente iniciaria o trabalho. Já estou aqui há dois anos e meio e está sendo uma aventura muito boa.

Você pendurou as chuteiras pelo Botafogo em 2004. Como foi aquele último ato como atleta profissional?
O Botafogo foi talvez a maior experiência que eu tive no futebol. Porque eu cheguei lá com 39 anos, com um convite do Levir Culpi e do finado Bebeto de Freitas para tentar resgatar o nome do clube, que tinha caído de divisão. Fizemos realmente um grupo, uma família, onde realmente nos ajudávamos. Às vezes, um jogador não ia treinar porque tinham cortado a luz, então fazíamos uma vaquinha para ajudar a pessoa em questão, e assim fomos criando realmente um ambiente de família, e no campo a gente jogava bola.

Por que não chegou a treinar nenhum clube médio/grande no Brasil? É um grande sonho?

No Brasil, se vive muito do resultado imediato. Então, para colher uma laranja - e eu posso falar bem disso porque, como eu sou do interior, de Siderópolis, estou acostumado a plantar laranja, cenoura, batata -, tudo tem seu tempo. Sou da construção civil também, e é a mesma lógica. No Brasil, você chega no clube numa segunda-feira e no domingo todo mundo já quer o resultado com o dedo ou a mão do treinador, então é muito complicado. Eu, como sou das antigas, gosto que minha equipe jogue bola, porque se minha equipe não jogar, não tiver posse de bola, eu não me sinto feliz. Eu sou um fanático do Pep Guardiola, tive um grande treinador que também me ensinou muito a gostar do toque de bola, que foi o Levir Culpi. Sem tempo isso não é possível, por isso eu nunca treinei no Brasil. Mas pretendo um dia, talvez brevemente.

Você foi campeão da Copa América de 1989 e um dos principais atletas da Seleção Brasileira. Como traduz os 49 jogos que fez com a Amarelinha? O ano seguinte, na Copa, foi a maior frustração da carreira (derrota para a Argentina)?

Nós começamos muito bem na época do Lazaroni, no esquema 3-5-2, que é um esquema que eu também aprecio muito, gosto de jogar com minhas equipes com três centrais. Acabamos com o caneco depois de jogar em vários Estados do Brasil. O ano seguinte era de Copa do Mundo, e o Brasil vinha numa crescente, mas os jornalistas ainda estavam incrédulos com o sistema do Lazaroni, com os três zagueiros, então houve muita turbulência. O Brasil ganhava os jogos, mas não dava espetáculo, e éramos criticados por isso. Dentro da minha ótica, o melhor jogo da Seleção Brasileira foi contra a Argentina, quando nós tivemos várias ocasiões para marcar e bola na trave, mas fomos embora para casa eliminados. Sem dúvida alguma foi meu ponto mais triste porque eu gostaria ter feito parte de um grupo que tivesse oferecido ao povo brasileiro um campeonato do mundo.Arquivo Hoje em Dia 

Em 1998, você foi pedido por Levir Culpi no Cruzeiro e foi vice-campeão brasileiro. Como foi a passagem pela Raposa? O que mais te marcou?

Em 1998, tive o prazer de trabalhar com o grande professor Levir Culpi. Eu cheguei com vários apelidos, como "asilo", "reumatismo", porque fui para o Cruzeiro com 35 anos, vindo do Japão. Fui taxado de várias coisas, mas como bom capricorniano que sou e com grande paciência, fui trabalhando e, aos poucos, conquistando a nação cruzeirense. Tínhamos que ganhar naquele Brasileirão seis partidas para não descer de divisão. Ganhamos oito ou nove seguidas e nos classificamos em oitavo na época do mata-mata. Nos playoffs, o Cruzeiro jogava muita bola mesmo.  Em um meio de campo com o Djair, era impossível não jogar bola. Ele é um dos maiores jogadores com quem joguei, com classe, elegante e um chute fantástico. Foi muito bem o Cruzeiro, uma pena esse clube não ter conseguido vencer. Fomos vice-campeões da Mercosul e do Brasileiro. 

Três anos depois, defendeu o Atlético naquela campanha que ficou marcada pela "piscina" no ABC Paulista. Aquele time, também comandado por Levir, seria campeão brasileiro se não fosse o estado do gramado contra o São Caetano? Foi uma das mais fortes que você defendeu?

Três anos depois eu voltei para Minas Gerais, que é um estado que eu amo muito e tenho grande respeito. Onde vivi um dos maiores momentos da minha vida. Fui representar o Clube Atlético Mineiro e grandes jogadores que por ali passaram. O time fez uma boa campanha ao comando de Levir Culpi, com o time jogando muita bola. Tinha Marcelo Dijian, Álvaro, Felipe, Gilberto Silva, de novo o mago Djair, Ramon, Guilherme, o maravilhoso Marques, que também foi um dos maiores jogadores com quem joguei na minha vida, tanto no Brasil como na Europa; tudo que o Marques fazia era maravilhoso. Ele levantava a galera, lembro que quando eu entrava em campo eu falava: faz um gesto aí para a torcida que ela fica louca. O time era muito bom, mas mais uma vez passamos do lado e não conseguimos ser campeões brasileiros. Ficou marcado nesse grupo aquele jogo em São Caetano, que até hoje eu não consigo entender como um árbitro tão experiente como o meu amigo Simon tenha validado as condições do gramado, que eram praticamente impraticáveis. Em duas bolas paradas sofremos o gol. Ainda tive a felicidade de fazer o 1 a 0, mas em duas bolas paradas o Magrão fez o 2 a 1 e eliminou a gente.Humberto Nicoline/Hoje em Dia 

E suas passagens vitoriosas por Benfica e PSG, o que mais te marcou? Quais as principais lembranças no Velho Continente?

Eu tive duas passagens maravilhosas na Europa. Em 1988, ingressei no glorioso Benfica, SLB, então fui acolhido de uma maneira fantástica em Portugal. Estou casado com uma portuguesa há 30 anos, tenho uma filha maravilhosa. Quer dizer, através do Benfica eu tive muitas alegrias. Eu vivo em Portugal já faz 30 anos, então eu tenho maior respeito, maior carinho. Eu retribuo aquilo que deram, porque se posso dizer que sou muito acarinhado, querido, até mimado pela torcida. Fico feliz quando entro no Estádio da Luz e vejo minhas fotos nas paredes e no vestiário do estádio. É um clube onde já passaram tantos craques, inclusive o Imortal Eusébio. Então eu só tenho que agradecer ao Benfica. No Paris Saint Germain talvez eu tenha atingido o auge da minha carreira com um treinador chamado Arthur Jorge, que realmente conseguiu me despertar e eu comecei a acreditar no talento que eu tinha e eu mesmo duvidava. Então eu devo muito ao professor Arthur Jorge. O PSG é mágica. Paris é Paris. O Parque dos Príncipes, onde vivi grandes momentos, dentre eles o célebre jogo entre PSG e Real Madrid, pela Liga dos Campeões, em que nós tínhamos perdido por 3 a 1 sendo esculachados no Santiago Bernabéu e eu fui muito criticado. Nós ganhamos por 4 a 1, eu participei dos quatro gols e eliminamos o Real Madrid. Então, em termos de Europa eu fui super feliz, continuo sendo feliz, torcendo para o PSG e Benfica para sempre.

Você entrou num seleto grupo de jogadores que aposentou com mais de 40 anos. Qual era a receita do Valdo para seguir sendo importante e atuando em alto nível, mesmo como "vovô" no mundo da bola?

Não tem muito segredo. É simples. Você tem que ter uma vida regrada. Nunca falei, nunca falo, nem nunca vou falar que fui craque, isso ou aquilo. Eu sempre falo de boca bem cheia que eu fui um atleta profissional de futebol, não um jogador de futebol. Eu sempre respeitei a mim mesmo principalmente  e, sobretudo, sempre respeitei as camisas que vesti e todos os torcedores que eu representava, porque muitas das coisas que eu coloco até hoje na mesa da minha família vem e veio do futebol, então o segredo é ter amor pela profissão, respeito pela entidade,  torcedores e ter uma vida regrada. Antigamente, você poderia jogar se tivesse só o talento, porque não tinha tanto condicionamento físico, mas hoje em dia começou a se jogar mais duro, de área em área e  a luta é no meio de campo.  O grande exemplo que temos hoje é o Cristiano Ronaldo, que tem uma vida regrada, já está no auge dos seus 34, 35 anos, mas quando entra em campo faz a diferença. Ainda no lote desses vovôs aí, tem uma pessoa que eu ressalto sempre que é o Zanettti, o argentino, que é um exemplo, que jogou até tarde e poderia ter jogado mais, assim como eu poderia ter ido um pouquinho mais. Uma coisa é você jogar até os quarenta, mas não treinar durante a semana. Eu joguei até os 40 e posso dizer que nos clubes que eu passei, Atlético, Cruzeiro e Botafogo, se eu falhei 10 sessões de treinamento eu estou exagerando.

O racismo ainda é uma coisa a ser combatida no Brasil. Você despontou no sul do país. Sofreu algum tipo de desrespeito por ser negro?

O racismo é uma coisa muito notória no Brasil. Eu sei bem do que eu falo porque eu vivi e vivo não só no Brasil, como em outros lugares. Infelizmente, hoje você vale o que você tem. Hoje em dia, olham para o Valdo e “ah, aquele negão lá tem uma certa condição", então eu passo a ter um valor. Eu acredito que o racismo no Brasil não é só em termos de cor de pele. A raça negra sofre muito, o pobre, a pessoa obesa sofre muito com o preconceito. Para eu chegar até onde eu cheguei, tem que ser muito forte mentalmente. Eu sou negrinho, pequenininho, nascido em Siderópolis, que era município de Criciúma e de 300 habitantes, então para chegar até onde eu cheguei tem que ser muito forte. Vivi e às vezes passo momentos de racismo, mas eu tiro tudo de letra porque Deus me deu não só a pele negra, mas também a inteligência. Sou muito orgulhoso de ser negro. Às vezes tem os casos de racismo no futebol, como vemos e vamos continuar a ver, o que é triste dentro do mundo que vivemos hoje, mas acredito que tão cedo não vai mudar, o mundo vai continuar sendo assim e nós negros temos que estudar, ser equilibrados para cada vez que virmos um ato racista, termos a palavra certa no momento certo. Não é através da violência, é através dos atos, dos gestos inteligentes, porque muita gente acha que ser negro é não ser inteligente. Nós temos tudo o que as pessoas têm, seja ela branca, cafuza, albina.. Deus deu e nós somos compostos da mesma matéria. Reprodução/Facebook 

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