Um dos líderes do Bom Senso FC, zagueiro Paulo André ataca estaduais e fala de represálias

Wallace Graciano
Hoje em Dia - Belo Horizonte
01/02/2015 às 15:32.
Atualizado em 18/11/2021 às 05:52

Poucas horas depois de conceder entrevista exclusiva ao Hoje em Dia, por telefone, o zagueiro Paulo André, de 31 anos, embarcaria rumo aos Estados Unidos para definir o acerto com o Orlando City, o mesmo clube do meia Kaká. Após passagem pelo Shanghaï Greenland, da China, o defensor quis retornar ao futebol brasileiro e chegou a abrir conversação com alguns clubes – o Cruzeiro estaria entre os interessados. Mas, o fato de Paulo André ser um dos líderes do Bom Senso FC – movimento organizado por alguns jogadores desde 2013 com a missão de cobrar mudanças e melhorias no futebol nacional – teria emperrado as negociações, supostamente por pressões da CBF. Nesta entrevista, Paulo André fala das supostas represálias sofridas por lideranças do Bom Senso, ataca novamente os campeonatos estaduais e critica o fato de o esporte nunca ter sido prioridade para o governo.

A maioria dos estaduais começa hoje, variando de 15 a 19 datas. É algo aceitável ou o Bom Senso ainda quer essas competições com apenas sete datas?
Não é tão simples. Entendemos que o atual modelo não é satisfatório. Mas quem elabora o calendário do futebol brasileiro é a CBF e não temos como influenciar no processo, pois não temos legitimidade e autonomia. A nós, cabe apenas o direito ao manifesto. Nada além. Mas o que posso dizer é que tecnicamente um estadual com 15 datas não é atrativo até mesmo para o público.

O movimento pretende endurecer com a CBF, a fim de exigir essas mudanças já para 2016?
O problema maior é que não podemos fazer muito. Quem decide são aqueles que têm direito a voto. O calendário passa pelos clubes. Os clubes concordam com o que é proposto, assinam, avalizam o calendário. Enquanto fizerem isso, não há como mudar. O engraçado é que ao final da temporada, são esses mesmos clubes que questionam o calendário atual do futebol brasileiro.

No último ano, Atlético e Cruzeiro sofreram com o calendário ao final da temporada. Era visível o desgaste físico dos clubes em uma decisão de Copa do Brasil. Como você enxerga isso?
Na verdade, o modelo do calendário do futebol brasileiro pune quem briga para conquistar títulos. É o caso de Cruzeiro e Atlético. Eles chegaram longe e, consequentemente, aumentaram o número de jogos na temporada. Por isso, sofreram com lesões e desgastes. É o que sempre afirmo quando perguntam sobre o número de jogos, principalmente sobre os estaduais. Se você fizer um cálculo de salário por jogo, verá que os números não são favoráveis ao clube. Com isso, o dinheiro que se ganha no estaduais não é atrativo.


Considerando também o caráter continental do Brasil e os interesses dos clubes do interior, o que você pensa sobre as opiniões favoráveis à extinção dos estaduais?
Sabemos que as medidas continentais do nosso País pedem a regionalização das competições. Elas seriam mais interessantes para esses clubes considerados pequenos. Uma reformulação poderia fazer com que os clubes pequenos possam jogar o ano inteiro. Nós, do Bom Senso, não lutamos apenas por quem está na elite. Pensamos em um todo. Para que todos possam jogar e ter condições. Voltando à pergunta anterior, você pode fazer o simples cálculo. Imagina um campeonato com 20 clubes. Desses, quatro devem ter um calendário completo garantido. Ou seja, são 16 que não sabem se jogarão o ano inteiro. Se você pega elencos de 30 jogadores, são cerca de 480 jogadores sem atuar. Isso precisa ser revisto.


Como foi a reunião com o novo ministro do esporte? Vocês saíram satisfeitos e otimistas do encontro?
Foi um encontro para tratarmos de algumas questões que já estão sendo conversadas há mais de um ano. Discutimos algumas questões, expomos nosso pensamento a ele, que está chegando agora. Mas ainda temos que aprofundar mais o debate. Nossa discussão é mais é mais técnica e menos política.

E qual foi a sua impressão a respeito do ministro, que foi indicado meramente por questões políticas e nunca militou no esporte?
O ministro está entendendo do assunto agora. Mas, infelizmente, o esporte nunca foi prioridade no país. Sempre foi sobrepujado por interesses políticos. Na minha opinião, ele está buscando conversar e dialogar com todas as partes, com atletas, movimentos sociais, clubes, demonstrando que veio para trabalhar e está disposto a escutar e ser escutado.


Um dos principais temas de debate são as certidões negativas de débito para a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE). Por que elas não são eficazes no controle do parcelamento?

O grande problema das certidões é que elas não garantem o pagamento das dívidas. Apenas mostram que o clube negociou o débito. Imagina só, um atleta entra na Justiça e ganha. Porém, do jeito que está, somente conseguirá que sua causa seja eficaz na última instância. Por isso, não concordamos. A gente defende a apresentação trimestral de contas com um órgão fiscalizador ou, como citamos, um vago comitê de acompanhamento.


O projeto de lei sobre o refinanciamento das dívidas dos clubes será finalizado em fevereiro. Quais devem ser as contrapartidas do governo para que isso não vire mais uma anistia?
Precisamos mudar muita coisa. Principalmente sobre a fiscalização. A Lei Pelé acata sobre vários assuntos, mas não é específica sobre quem fiscaliza e como fiscalizada. A gente tem abordado essa questão. Temos que fazer com que essa responsabilidade seja transferida ao dirigente.

Como vocês acompanharam, há duas semanas, a tentativa da bancada da bola e da CBF de aprovar o refinanciamento das dívidas dos clubes sem dar nada em troca?
Infelizmente, é o país que a gente vive. É uma vergonha. Tentamos mudar isso. O próprio governo tem que mudar. Felizmente, a Dilma (Rousseff, presidente) não sancionou. E teve uma repercussão positiva. O povo brasileiro não aguenta mais ser passado para trás pelas contas. Já tiveram outras vezes essa possibilidade de refinanciamento e não fizeram. Isso tem que ser mudado.

Em caso de insucesso nessa luta, há a possibilidade de uma paralisação?
Não sei. Acho difícil. O movimento que fizemos não surtiu o efeito necessário. Se não fizerem a CBF mudar sua política e conseguirmos ter voz ativa, não adiantará de nada.

Como vocês vêm fazendo para mudar esse panorama, já que não têm voz junto à CBF, que possui certa autonomia?

Uma questão que estamos tentando mudar e há a possibilidade de incluir isso durante as discussões sobre a LRFE. Um desses pontos é incluir pequenas mudanças no Artigo 18 da Lei Pelé. As federações se amparam no Artigo 217 da Constituição, que lhes dá autonomia. É preciso democratizar essa estrutura, e um primeiro passo seria dar voz para que os atletas também participem do processo.

Quanto à questão dos salários atrasados para os atletas e funcionários dos clubes. O novo ministro disse que quer tomar alguma medida para resolver esse aspecto trabalhista. O que o Bom Senso sugere?

O Bom Senso acredita que administração do clube tem que cumprir todas as suas responsabilidades. Por isso, durante as conversas, pautamos a necessidade de que eles comprovem o pagamento do vencimento trimestralmente e que isso tenha acompanhamento efetivo de um órgão.

O Bom Senso tem tratado de novas pautas para melhorar o futebol em um sentido mais amplo? Por exemplo, o que tem feito pelo futebol feminino?
O Bom Senso, infelizmente, não tem como atuar em todas as frentes. Tentamos solucionar um primeiro problema para depois, quem sabe, avançar. Mas eu, Paulo André, acredito que a CBF deveria se preocupar mais com o futebol feminino, já que está cheia de receitas e, mesmo assim, pouco investe. A CBF deveria investir mais no futebol feminino e colocá-lo onde merece, já que temos talentos excepcionais aqui, como a Marta. O calendário atual do futebol feminino é mal formulado. Se arrasta. O cenário é horrível. Devastador. Isso graças ao pouco investimento.

A maioria dos líderes do Bom Senso é bem sucedida como jogador. Os interesses dos jogadores que ganham pouco e são maioria no futebol estão bem postos e defendidos?
A gente sabe que grande maioria da categoria recebe até dois salários mínimos. E nosso movimento trabalha para eles. Os dirigentes querem jogar a opinião contra nós, afirmando que nós, atletas que conseguimos atuar em alto nível, estamos lutando apenas a nosso favor. Isso não é verdade. Pense comigo: como um atleta que joga no interior de Minas, no interior de São Paulo ou no interior do Rio de Janeiro conseguirá ir a Brasília ganhando dois salários mínimos? Nosso movimento luta por eles. Nossos líderes são atletas já consolidados no futebol, jogadores de elite que não temem retaliação. Que colocam a cara para bater. Estamos fazendo um movimento contra o sistema. E há jogadores de “pequeno porte”, de Série D, que fazem parte do processo. Eles opinam. Alguns chegaram a se encontrar com a Dilma na reunião que tivemos com a presidente. Mas não são todos que podem colocar a cara a bater.

E quanto aos jogadores do passado, muitos em dificuldades, há algo que pode ser pensado e feito?
A gente tem duas bandeiras (calendário e o fair-play financeiro). Não podemos falar do que não estamos defendendo. Não que a gente não vá fazer. Mas isso tem que ser estudado. Não dá pra chegar e simplesmente colocar na mesa algumas situações. A gente sabe que, infelizmente, muitos jogadores ficaram com uma situação financeira prejudicada por não ter um auxílio e um nível educacional desejado.

O fato de você ser um atleta de futebol politizado, uma liderança, te prejudica de certa forma? Há represálias e resistência dos dirigentes de clubes brasileiros em contratá-lo?
Essa foi uma posição que tomei em minha vida, de querer voltar ao Brasil e jogar em alto nível. Venho conversando com alguns clubes e realmente há um receio. Há uma barreira. Tem sido muito difícil conseguir emprego. Eles têm medo. Eles temem que comigo no elenco algo ruim possa acontecer. Estou ciente disso.

Nesses últimos dias, você chegou a conversar com algum clube, mas sentiu que essa equipe recuou justamente por isso?
Sim. Ocorreu com mais de um (clube). Conversamos bastante. Na hora de avançar, preferiram recuar. Até pela questão política que envolveria a contratação. Estou pagando o preço de lutar pelo o que acredito.

Você ou algum companheiro de Bom Senso chegou a ser ameaçado ou coagido a sair do movimento?
Ameaça ninguém faz diretamente. Teve gente que já ouviu aconselhamentos para não fazer parte. Acredito que nos principais clubes do Brasil sempre agiram de forma indireta , dando uma sinalização. Mas ameaçar ninguém teve coragem.

Acredita que algum atleta deixou de entrar no movimento com medo de represálias?

Sem dúvida nenhuma. Tem gente com medo de entrar e perder o emprego. Há também quem não possa entrar no Bom Senso por conta do tempo, pois jogam quarta e domingo. Eles não podem abandonar seu clube. Se perde um jogo, a cobrança seria muito maior. Mas vou ser sincero: o brasileiro é muito pacato. Enquanto as pessoas continuarem se omitindo, sem pensar em um todo, não conseguiremos evoluir. Vamos viver nesse processo.

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