Ícone da gastronomia, Dona Lucinha fala do prazer de cozinhar com jeitinho mineiro

Patrícia Santos Dumont - Hoje em Dia
16/02/2015 às 07:28.
Atualizado em 18/11/2021 às 06:02
 (Frederico Haikal)

(Frederico Haikal)

De uma cozinha rústica de fundo de quintal, numa casinha na roça, aos fogões industriais na capital. Professora, diretora escolar, salgadeira e doceira, feirante, quitandeira e até vereadora. Cozinheira, como prefere. Maria Lucia Clementino Nunes, a Dona Lucinha, há décadas mudou de cidade, de ares, mas manteve a essência, primitiva, como faz questão de ser.   Mãe de 11 filhos, avó de 24 netos, a simpática senhorinha de 82 anos, olhos azuis e sorriso fácil, uma das figuras mais emblemáticas da capital quando o assunto é a cozinha de Minas, falou ao Hoje em Dia sobre o prazer de cozinhar, gastronomia mineira e, claro, sobre a sensação de servir de inspiração para o enredo da escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro.    A senhora saiu de uma cidadezinha de interior, o Serro, e acabou famosa em Belo Horizonte. Como aconteceu toda essa mudança e o que motivou sua vinda para a capital?   Sempre gostei muito de cozinhar, desde menina, e, depois que me aposentei, resolvei abrir um restaurante, o Restaurante Vila do Príncipe, como o Serro era chamado. Fiz questão de que fosse uma coisa mais histórica. Naquela época, o dono do Serrana Palace havia ido para o Serro fazer uma mineração com meu marido e eu ia para um ranchinho cozinhar para eles. Um dia, eu estava fazendo o almoço e ele disse: ‘Dona Lucinha, cheiro não desce desse jeito não, o vento toca. Mas como é que está indo lá para baixo? É demais. O que é que a senhora põe na panela?’. E eu falei: ‘é amor, doutor’. Ele disse que eu teria que pôr esse amor na panela do restaurante dele, em Belo Horizonte. Fui para lá e acabei cozinhando em várias redes de hotéis. Como os convites não paravam de aparecer e o sucesso foi muito grande, abri meu próprio restaurante.    E essa paixão toda pela cozinha, como nasceu?   Desde menina, com 18 anos, gostei de cozinhar. Em casa, com a mamãe, fazíamos guisadinho, mas o mais importante é que quando nós começávamos a fazer essas coisas, as visitas que chegavam iam logo falando: ‘Nossa Senhora, isso é bom demais, tem que passar para outras pessoas’. Lá no Serro, quando fui designada para ser diretora escolar, fiz uma pesquisa também sobre o que os alunos escondiam no mato. É que na hora do recreio eles corriam pra lá. Acabei descobrindo que era a própria merenda deles. Guardavam para comer na volta porque a distância era muito grande até em casa.    Na família da senhora, outras pessoas, filhos, netos, herdaram o gosto pela culinária?   Todos gostam demais, mas a Elza Maria é a que mais gosta de cozinha. Essa tem a mesma mania minha. É ela quem administra o restaurante de São Paulo, com outras duas filhas.   E por falar em São Paulo, quais são os planos da senhora para o futuro? Pretende abrir outros restaurantes em Belo Horizonte, e até em outros estados, ou escrever um novo livro?   Eu faço outros livros, mais simples, que a Drogaria Araújo vende pra mim. São receitas bem simples, para ajudar na renda do meu instituto e na manutenção da Casa de Acolhida Padre Eustáquio (Cape). Mas eu sempre falo com os meninos: ‘a hora que vocês quiserem abrir, eu apoio demais, contanto que não mudem os costumes’. Tanto é que eu gosto de ter trabalhando, especialmente na cozinha, filha, porque para prosseguir nisso, não é muito fácil. Fácil é abrir a lata e servir, manter isso sem abrir lata não é brincadeira.   Por que? A senhora tem alguma restrição nas cozinhas dos seus restaurantes? O que está proibido de entrar nelas?   Aqui não tem nada artificial. A comida é toda feita com ingredientes novos, não tem enlatado. Tudo o que a gente usa nas fazendas, tem aqui. O que está proibido é sujeira, isso não pode de jeito nenhum.   Há quem diga que cozinhar é um dom. A senhora acredita nisso ou acha que basta um pouquinho de boa vontade para fazer as coisas darem certo?   É um dom mesmo. Se não amar a cozinha, não entra. Tem que ter amor na panela, isso que é importante. Porque se você refoga por refogar, aí não tem graça.   A senhora se tornou uma espécie de grife quando o assunto é a gastronomia de Minas. Quer dizer, transformou-se em uma legítima representante dos mineiros. A que a senhora credita esse sucesso todo?    Em primeiro lugar, foi uma bênção de Deus e apoio de Nossa Senhora, da qual sou muito devota. Porque sou uma pessoa que não tem uma faculdade, não pesquisei nada fora, só no interior, principalmente no Serro, que é minha cidade. Fui morar na casa dos meus avós, e minha avó também tinha essa ideia de pesquisa e de aprofundar. Na casa deles, eles tinham as melhores comidas possíveis, e aí eu fui aprofundando, comecei a fazer e o restaurante deu muito certo. Além do prazer, é buscar informação. Não pode parar de pesquisar. Porque a gente pensa que já sabe tudo, mas ainda tem muita coisa para saber.    Ao longo desses anos todos preparando todas essas delícias tradicionais, a paixão pela cozinha continua a mesma? 
O prazer é o mesmo, não muda não, é amor na panela. Cada prato que a gente faz, cada comida, é uma realização.    Na época em que ainda comandava os restaurantes, a senhora fazia cursos, procurava estudar, se atualizar, mesmo apostando em uma culinária tão simples?   Sempre estudei muito a parte de higiene, de comunicação. Tudo tem que ir aprimorando, só não pode modificar o sabor. A essência dos pratos, bem primitivos, tem que ficar.   Que peso a “homenagem” prestada pela Salgueiro, cujo desfile foi baseado no livro da senhora, tem sobre a culinária mineira e sobre o nome de Minas? De que forma essa homenagem pode contribuir para lançar o nome da nossa gastronomia no cenário nacional e até internacional?   Eu não vejo porque fazer uma homenagem por uma comida tão simples. Não entrou na minha cabeça. Eles falaram que o livro que fiz com a Márcia (uma das filhas) tinha muita matéria, dava para fazer um trabalho maior. Acredito que mostrar minha cidade seja importante para o desenvolvimento dela, que podia ser todo baseado nisso, já que tem uma comida que é toda antiga, tradicional. Acho que isso vai dar um vulto maior ao Serro, desenvolvê-lo, o que é meu sonho. E, depois, Minas também, através de Belo Horizonte.    A senhora acha que Minas alcançou ou está para alcançar patamares de gastronomia internacional? Acha que recebemos o devido valor dentro do estado, no Brasil e fora dele?   Não. Eu acho que ainda temos que evoluir muito, porque Minas é um Brasil. Mas está indo muito bem. Ainda precisamos, principalmente, de mais divulgação e de apoiar quem faz esse trabalho. E, tendo apoio, não pode deixar a peteca cair. Mas o caminho é esse, está muito certo.   Que tipo de apoio seria esse? No ano passado, o governo do Estado levou chefs de Minas para eventos internacionais e trouxe nomes renomados no país para Belo Horizonte. A senhora acha que é esse o caminho? Acredita que a gestão atual também irá apoiar a gastronomia mineira?   Acho que sim. Eles estão pondo a casa em ordem, mas acho que o partido deve valorizar. O apoio tem que ser aos nossos chefs e cozinheiros, no sentido de fazer acontecer as coisas em que Minas tem tradição. Mas primeiro é preciso estudar a cultura do estado, desde o princípio, para aí divulgar e dar mais apoio. Deveriam criar bastantes festivais aqui para desenvolver. É como se a cozinha fosse uma vela que não pode apagar. Tem muita cidadezinha pequena, como o Serro, que fica esquecida.

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