Histórias de sem-teto perpassam da infância roubada a ações abusivas de fiscais

Raul Mariano
21/03/2019 às 20:51.
Atualizado em 05/09/2021 às 17:54
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

Carlos Alberto Diniz de Aquino tem 27 anos e sofre violações de direitos básicos desde a infância. Estudou somente até a segunda série do ensino fundamental, foi espancado diversas vezes pela mãe após descobrir a própria homossexualidade, aos 8 anos, e, hoje, na rua, se diz alvo do poder público municipal. Ele denuncia que fiscais eventualmente levam embora parte dos poucos pertences que possui - uma reclamação comum da população sem-teto de BH.

Na rua, Carlos começou a ganhar a vida como lavador de carros. Pouco tempo depois, conheceu o companheiro com quem está casado há 11 anos. De casa, guarda apenas lembranças traumáticas. A pior delas do dia em que a mãe, já falecida, o submeteu a um banho de pimenta na tentativa de “curar” o rapaz da condição de homossexual. Flávio Tavares / N/A

DRAMA - Sem trabalho, Carlos e o parceiro dependem de doações de comida e mantimentos

Hoje, morando embaixo de uma passarela na avenida Cristiano Machado, no bairro da Graça, garante estar livre da reprovação familiar já que não vê nenhum parente há mais de cinco anos. 

Por outro lado, Carlos ainda é obrigado a lidar com a homofobia de pedestres - que criticam até o modo de se vestir do jovem - e com a arbitrariedade de fiscais da prefeitura. “Quando eles cismam de levar as coisas, não adianta reclamar”, diz.

Fiscalização

De 1º de janeiro até 15 de março, 106 mil toneladas de materiais considerados inservíveis foram recolhidos junto à população de rua de BH por fiscais da Secretaria Municipal de Política Urbana. A maior parte dos itens foi coletada nas regiões Centro-Sul, Noroeste e Pampulha.

De acordo com a pasta, as ações acontecem desde 2017 e “garantem aos moradores a posse dos pertences pessoais, sendo assegurada a guarda dos objetos que eles possam transportar”. 

São considerados inservíveis, de acordo com a secretaria, materiais como arames, carvão, restos de papelão, pedaços de madeira, aço, plástico, lona, cordas, pedras e sucata eletrônica. Todos os itens, ressalta o órgão, podem ser reavidos com a apresentação do auto de apreensão.

Denúncias

Os relatos de recolhimento de pertences sem o consentimento dos moradores, no entanto, são frequentes. Quem afirma é a coordenadora do Centro Estadual de Defesa dos Direitos da População de Rua, Luisa Vitral. 

“Há equipes de abordagem que fazem esse serviço pela prefeitura, mas basicamente eles apenas levam os objetos sem estabelecer diálogo”, afirma.

Professor do curso de psicologia e coordenador do programa Polos de Cidadania da UFMG, André Luiz Freitas Dias também aponta o recolhimento compulsório de pertences como uma das reclamações mais comuns entre os sem-teto da capital. 

Confira o vídeo que sintetiza a série "Olhos da Rua":

O pesquisador, que estuda populações em situação de rua como colaborador da Universidade de Barcelona, explica que o fenômeno é crescente em todo mundo e que a capital já deve ter cerca de 10 mil pessoas nessas condições. 

“Em BH, faltam políticas estruturantes”, afirma. “O município gasta uma fortuna com mega operações para retirada de pessoas e recolhimento de pertences e, às vezes, no mesmo dia, aquelas pessoas retornam ao mesmo local”, analisa.

Secretária Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, Maíra Colares explica que, antes, os fiscais escolhiam os itens que seriam recolhidos na abordagem. “Hoje, isso está superado”, garante. “Mas a fiscalização ainda é um ponto de muita tensão”, admite. 

Ex-moradores de rua ajudam no resgate das pessoas que hoje vivem sob marquises em BH 

O serviço de abordagem realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte conta, atualmente, com 97 pessoas, que atuam em todas as regionais do município. Mas dentro desse grupo, alguns atores têm relevância especial. 

É o caso de Daniel Santos da Cruz, de 37 anos, que durante mais de uma década viveu em situação de rua. Flávio Tavares / N/A

VOLTA POR CIMA – Daniel Cruz e Jéssica Silva, que trabalham no serviço de abordagem da prefeitura, usam da experiência para fazer a diferença na vida de moradores de rua 

Hoje, na função de educador par, auxiliando os técnicos na aproximação com os desabrigados, Daniel garante que se encontrou em uma atividade na qual ele acredita. 

“Trabalho na vinculação da garantia de direitos da população de rua”, explica. “Eu os ajudo a entender que eles possuem o direito de ter direitos. Ou seja, eles devem ser respeitados como pessoas e não ser tratados como um lixo da sociedade”, diz.

Experiência

Junto a Daniel, outra ex-moradora da rua usa da experiência de vida para contribuir com o resgate de pessoas que estão sob os viadutos e marquises de BH. Jéssica Teixeira da Silva, de 28 anos, relata que o pai abandonou a família quando ela tinha apenas 2 anos de idade.

A situação obrigou a mãe de Jéssica a trabalhar em horário integral e ela, por consequência, viveu a infância sem contato com os pais. A circunstância, relata a garota, acabou a levando a fugir de casa inúmeras vezes até o momento em que não voltou mais para o lar. 

Em 2017, depois de viver um relacionamento abusivo, Jéssica foi acolhida na Casa de Referência Tina Martins, onde conseguiu reorganizar a vida e, posteriormente, iniciar a atuação junto às equipes da prefeitura.

“Hoje entendo que posso fazer a diferença na vida de outras mulheres”, comemora. “Quando abordo as pessoas, vejo problemas semelhantes aos que eu vivi e sempre consigo dar alguma orientação que pode ser útil”, destaca.

Arte para sobrevivência

Há duas décadas vivendo nas ruas de BH, Gerson Flores, de 47 anos, já se tornou figurinha carimbada na avenida do Contorno, no bairro Floresta. Artista nato, ele pinta quadros coloridos para garantir a própria subsistência e a dos cães que vivem com ele. O trabalho acabou trazendo popularidade ao morador.

A rotina, no entanto, não é nada fácil. Gerson precisou desenvolver os dotes artísticos mais por necessidade do que por vontade. Sozinho, ele conta que, no passado, trabalhou como lanterneiro e soldador, mas depois da morte da mãe e dos desentendimentos familiares acabou indo para a rua e não conseguiu mais trabalho formal. Flávio Tavares / N/A

TRABALHO – O artista de rua Gerson Flores pinta quadros para trocá-los por comida e ração para os cachorros

 “Parte da minha família pensa que eu faleci”, relata. “Tenho bradicardia, uma doença que deixa os batimentos do coração mais lentos e pode levar à morte”, diz. 

Na calçada em que trabalha, ele conta que já teve princípio de infarto duas vezes e por pouco não “bateu as botas”. O maior incômodo, explica, é o medo de ter os pertences levados embora por fiscais da prefeitura. 

“Eu fico sempre alerta porque, se bobear, vai tudo embora. Sem meus materiais de pintura, como é que eu vou conseguir comida pra mim e pros meus bichos?”, questiona.

Mobilização

Diante dos relatos frequentes de recolhimento de pertences dos moradores em situação de rua, o Bloco da Bicicletinha - formado por ciclistas e foliões do Carnaval de BH - se reuniu com a Pastoral de Rua para realizar, nesta sexta, o “Rolê Pop Rua”.

“Vamos nos reunir às 19 horas, na Praça Rio Branco, no Centro, e pedalar pelas ruas da região para dialogar com esses moradores e explicar a eles como proceder em caso de abusos por parte de fiscais”, explica Joca Corsino, membro do bloco.

Ele afirma que pelo menos 100 pessoas são esperadas para a ação que vai distribuir, ainda, cópias de um sentença judicial que aponta irregularidade na “coleta compulsória” de objetos na população em situação de rua.

“Vamos oferecer essa orientação a eles e ainda fazer doações de roupas, calçados e alimentos”, conclui Corsino.

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