Mães da rua: cotidiano de mulheres que vivem sob viadutos em BH é marcado por agressões

Raul Mariano
20/03/2019 às 20:56.
Atualizado em 05/09/2021 às 17:53
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

Elas são minoria entre a população em situação de rua de Belo Horizonte, mas estão mais suscetíveis a todos os tipos de violência. Se a vulnerabilidade feminina já é um indicador preocupante no Estado - onde 15 mulheres são agredidas por hora -, para aquelas que vivem sob marquises e viadutos, distante das famílias, os riscos são ainda maiores. 

Relatos de agressão física e psicológica são quase unânimes entre as mulheres que, por motivos diversos, se desligaram até mesmo dos filhos para viverem nas ruas da capital. Um cotidiano marcado pela exposição a doenças sexualmente transmissíveis e carência de itens básicos de higiene pessoal. 

Isabel Cristina de Paula, de 50 anos, conhece bem o pânico de passar as noites sozinha em uma barraca de lona, na avenida Portugal, na Pampulha. Há dois anos no local, ela chegou a viver com um companheiro que a abandonou poucos meses após a união. 

Mãe de quatro jovens, três deles vivendo em Paraisópolis, no Sul de Minas, Isabel conta que está em Belo Horizonte à espera da libertação de um filho que cumpre pena no presídio José Martinho Drumond, em Ribeirão das Neves, na Grande BH. 

Na barraca sem ventilação, onde Isabel passa todo o tempo em silêncio, suportar o calor escaldante é só um dos desafios diários. Ela afirma que já flagrou bandidos roubando em plena luz do dia os cosméticos que guarda com tanto carinho.

“Quero sair dessa vida sim”, conta, com voz trêmula. “Mas sem meu menino que está preso injustamente não volto pra minha cidade de jeito nenhum”, garante.

Solidão

O distanciamento dos filhos também foi crucial para que Vânia Maria Socorro Alves, de 51 anos, deixasse o lar para trás e fixasse moradia embaixo de uma das passarelas da Estação São Gabriel, região Nordeste de BH. 

Os quatro rapazes que criou se tornaram dependentes químicos e a agrediam fisicamente dentro de casa. Na tentativa de suportar a mágoa causada pelo relacionamento familiar conflituoso, ela conta que acabou se tornando alcoólatra. Flávio Tavares / N/A

Após ser agredida em casa pelos quatro filhos dependentes químicos, Vânia Alves acabou se tornando alcoólatra e viu a saúde piorar na rua 

Na rua, constata Vânia, a saúde piorou drasticamente, sendo que as dores na mama direita são o maior incômodo. “Tenho um tumor que vai precisar ser retirado com cirurgia”, revela. 

Passar pela intervenção médica, no entanto, não amedronta a mulher. Ela explica que já operou o coração uma vez e controla a pressão arterial à base de remédios. 

Pelo menos 16 milhões de mulheres - cerca de 30% da população feminina do país - sofreram algum tipo de violência ao longo de 2018, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Com olhar entristecido, sentada sobre o colchão sujo onde repousa todas as noites, ela reclama apenas da dificuldade de dormir tranquila. “Queria descansar um pouco, mas como numa condição como essa?”, questiona. 

Insegurança 

Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, a socióloga Ludmila Ribeiro afirma que o nível de vulnerabilidade social das mulheres em situação de rua é assustador.

Ela defende que até mesmo a falta de acesso a itens de higiene pessoal deve ser vista como uma violência simbólica. “É uma questão biológica, mas que coloca essas pessoas em condições extremas de violação”, analisa. 

“Muitas vezes elas se submetem ao sexo inseguro pelo medo de serem violentadas”Ludmila Ribeiro Socióloga e pesquisadora da UFMG

A especialista ainda ressalta que muitas mulheres em condição de rua são estupradas e, mesmo nas relações com consentimento, podem ser infectadas por doenças sexualmente transmissíveis. “Muitas vezes elas se submetem ao sexo inseguro pelo medo de serem violentadas”, diz.

Cruz Vermelha pede doações de roupas íntimas e itens de higiene para as sem-teto 

Mãe de três filhos e avó de dois netos, Alaene da Silva tem 47 anos e passou pelo menos metade deles na rua. A ex-cozinheira, que afirma ter sido funcionária de restaurantes “chiques” na Savassi, ainda passa algumas temporadas em casa com a família, mas “nada que dure muito tempo”. 

Atualmente, ela vive com um companheiro em uma barraca de camping na calçada da avenida Bernardo Monteiro, no bairro Santa Efigênia, região Leste de Belo Horizonte, e tem consciência de que a vida na rua impõe riscos à saúde. 

“Meu namorado tem tuberculose, mas como tenho a saúde boa, graças a Deus não peguei a doença”, relata, com coragem. Flávio Tavares / N/A

Há anos na rua, Alaene Silva vai realizar sonho de colocar prótese dentária 

Apesar da exposição diária a todos os riscos da vida na rua, Alaene garante que vive um momento feliz. “Vou realizar meu sonho de colocar minha prótese dentária”, conta. “Não tenho do que reclamar não”, diz. 

Solidariedade

Histórias como a de Alaene, Vânia e Isabel motivaram a filial da Cruz Vermelha em Minas a lançar uma campanha para arrecadar roupas íntimas, absorventes, produtos de higiene pessoal e itens como batons e esmaltes, que serão doados às mulheres em situação de rua na capital. 

A coordenadora de voluntariado da entidade, Regina Célia da Silva, explica que a ação, batizada de “Amor, palavra íntima”, é realizada em parceria com a prefeitura de BH e busca devolver a dignidade às mães da rua. 

“Queremos sensibilizar a sociedade para o fato de que essas mulheres também são cidadãs e têm direitos”, afirma. “Vamos oferecer a elas calcinhas, sutiãs e itens pessoais novos para garantir um mínimo de conforto no dia a dia”, explica Regina.

As doações podem ser entregues na sede da Cruz Vermelha de segunda a domingo, das 8h às 18h, na Alameda Ezequiel Dias, 427, no Centro de Belo Horizonte. Outras informações podem ser solicitadas pelo telefone (31) 3239.4227. A campanha deve durar até o fim do mês de março.

Atendimento

Belo Horizonte conta com o Centro Integrado de Atendimento à Mulher, equipamento voltado para o atendimento àquelas que estão em situação de rua ou são usuárias de drogas.

O espaço, que funciona das 13 às 19 horas, fica na rua Itapecerica, 632, Lagoinha, e oferece a esse público a inserção na rede municipal de saúde, assistência social, educação e inclusão produtiva, segundo informações da PBH.

O imóvel tem oito cômodos, além de dois barracões anexos, e atende cerca de 30 mulheres por dia. Além de um lugar de convivência, o centro conta com espaços adequados para cuidado e higiene pessoal, lavagem de roupas e guarda de pertences, de acordo com a prefeitura.

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