Além das roupas, dos sapatos e dos jalecos, os cabelos também são brancos. Os fios claros trazem a história de meio século de trabalho em hospitais, postos de saúde e consultórios na capital mineira. A idade avançada não é um impedimento para que médicos mais antigos de BH continuem na ativa. Pelo contrário. Com os anos de carreira, vêm também a experiência e o entendimento de só quem viu, com os próprios olhos, a medicina se transformar.
A principal mudança no ofício foi a modernização nos processos, antes analógicos, o que obrigou o profissional a se adaptar. Mesmo assim, os veteranos não têm dúvidas: a afetividade ainda é essencial na relação com as pessoas.
“Paciente precisa de cuidado e toque. Isso não vai mudar”, afirma Alcino Lázaro da Silva, de 81 anos, há quase seis décadas atuando como médico cirurgião do Sistema Único de Saúde (SUS) de BH.
O especialista diz que vale muito mais um cafuné no doente do que uma bateria de exames. “Ele quer sentir o médico. Isso não mudou e não mudará, pois somos seres humanos, convivemos e dependemos um do outro”.
O posicionamento pode soar conservador, mas os anos mostraram aos mais experientes que a tecnologia é importante, mas serve como complemento aos atendimentos. Que o diga Ronaldo Simões Coelho, de 85 anos, médico e escritor. Hoje, ele não receita medicamentos: é a conversa com os pacientes que orienta as consultas. Ele luta para que a psiquiatria seja uma área mais humanizada.Cristiano MachadoSempre de bom humor, o psiquiatra Ronaldo Simões concilia a medicina com a atividade de escritor
Ronaldo dirigiu a ala de psiquiatria do Serviço de Saúde Médica de Minas Gerais nos anos 1970, e foi um dos primeiros a denunciar a tortura e os maus-tratos aos pacientes nessas unidades de saúde. “Muitos deles não tinham sequer nome na ficha. Jovens que tiveram filhos fora do casamento eram internadas e dadas como loucas pela família, que queria esconder a situação”.
Mas as histórias infantis e lúdicas, no entanto, continuam sendo as preferidas de Ronaldo. “Escrever não é um subterfúgio para mim, é o que me dá alegria", diz o médico, que ouve sobre transtornos mentais no consultório e fala de afeto para os pequenos nas escolas..
Ensinar crianças e adolescentes é o que também dá sentido à vida da imunologista e oncologista Irene Adams, de 77 anos. Holandesa, ela chegou a Minas Gerais em 1986 e sabe de cor o nome e a história dos pacientes. Adepta da conversa e do carinho, a veterana atende voluntariamente jovens em situação de vulnerabilidade social, especialmente vindos da rua ou de abrigos.
A médica tem um ar professoral. Irene não usa jaleco há anos. Na mesa, um computador e prontuários de papel convivem lado a lado. O espaço é repleto de publicações com figuras. “Se um paciente está com problemas no estômago, uso um livro com imagens do órgão para explicar. Quero que o jovem saiba que a saúde é dele. Minha missão é educar para a vida através da saúde”.
Em meio à tecnologia, afetividade segue em alta
Numa primeira impressão, os médicos mais antigos podem até parecer ‘congelados’ no tempo. Mas não é assim. Aos 81 anos e com mais de meio século de carreira, o pediatra José Guerra Lages, por exemplo, não dispensa o uso da tecnologia no consultório, que tem aparelhos de última geração.
Para aprender a lidar com a modernização, todos os dias o médico aprende novos recursos com alunos e médicos residentes do Hospital São Camilo, na capital. “Até tento acompanhar, mas não tenho a pretensão de achar que consigo entender tanto quanto os jovens”, diz.
Flávio Tavares
José Guerra não dispensa o contato mais próximo com o paciente
Apesar de achar os equipamentos fantásticos, como descreve, José garante que jamais menosprezará o raciocínio e o contato com o paciente. Para ele, a experiência não está nos livros didáticos. “O uso das mãos, do olfato, da visão, da audição e principalmente da afetividade continua tão importante como antes. O conhecimento proporcionado pela tecnologia não substitui a prática da vida diária”.
Mesmo com os esforços, alguns dos médicos mais experientes da capital permanecem analógicos como forma de resistência. Sem celular, computador e e-mail, Alcino Lázaro da Silva é adepto do papel e caneta. Além das receitas, todos os 20 livros que publicou foram escritos à mão.
O cirurgião-geral é um dos médicos e professores mais antigos em atividade na capital. Ele conta com a ajuda dos ‘moços’ – como chama os residentes que orienta nos hospitais das Clínicas, da UFMG, e Cristiano Machado, em Sabará (Grande BH) – para realizar os procedimentos médicos que precisam ser feitos no computador. “Trabalho em equipe: eu faço a cirurgia e alguém digita”.Flávio TavaresAlcino Lázaro da Silva nem cogita parar de trabalhar: “paciente precisa de cuidado e toque. Isso não vai mudar”
Não ter se tornado um ‘médico digital’, não impede Alcino de exercer a profissão. Ele trabalha cerca de 12 horas por dia nos hospitais e no consultório. Nas horas vagas, anota, à lápis, as folhas de uma nova proposta curricular para o curso de medicina.
Pacientes aprovam o carinho dos profissionais mais velhos
Quem é atendido com uma dose de carinho por parte dos médicos agradece, e muito. É o caso do agente social Anderson de Freitas Soares, de 29 anos. Recentemente, ele voltou para uma consulta com a imunologista Irene Adams, no consultório dela no bairro Bonfim, Noroeste de BH.
Anderson era morador de rua e tinha 12 anos quando a médica o atendeu pela primeira vez. No prontuário de papel, o nome e as fotografias do jovem retratam a trajetória de uma infância difícil. Assim como ele, pacientes que passaram pela pequena sala de Irene, quando mais novos, ainda podem fazer check-up com a especialista.
Agora, após 17 anos, o agente social deita na mesma maca para ser examinado. O carinho com que a imunologista o tratou desde o princípio fez com que ele continuasse a se consultar com a médica.
“A doutora Irene fez parte da minha história no momento que eu ainda não entendia sobre a importância da saúde e de me cuidar. Eu não ligava para isso porque era morador de rua. Quando vim para a primeira consulta, ela me ensinou a olhar para mim com cuidado. Ela teve amor”, conta Anderson.