Com décadas de carreira, médicos de Belo Horizonte defendem tratamento humanizado

Malú Damázio
mdamazio@hojeemdia.com.br
26/05/2017 às 19:13.
Atualizado em 15/11/2021 às 14:44

Além das roupas, dos sapatos e dos jalecos, os cabelos também são brancos. Os fios claros trazem a história de meio século de trabalho em hospitais, postos de saúde e consultórios na capital mineira. A idade avançada não é um impedimento para que médicos mais antigos de BH continuem na ativa. Pelo contrário. Com os anos de carreira, vêm também a experiência e o entendimento de só quem viu, com os próprios olhos, a medicina se transformar.

A principal mudança no ofício foi a modernização nos processos, antes analógicos, o que obrigou o profissional a se adaptar. Mesmo assim, os veteranos não têm dúvidas: a afetividade ainda é essencial na relação com as pessoas.

“Paciente precisa de cuidado e toque. Isso não vai mudar”, afirma Alcino Lázaro da Silva, de 81 anos, há quase seis décadas atuando como médico cirurgião do Sistema Único de Saúde (SUS) de BH.

O especialista diz que vale muito mais um cafuné no doente do que uma bateria de exames. “Ele quer sentir o médico. Isso não mudou e não mudará, pois somos seres humanos, convivemos e dependemos um do outro”.

O posicionamento pode soar conservador, mas os anos mostraram aos mais experientes que a tecnologia é importante, mas serve como complemento aos atendimentos. Que o diga Ronaldo Simões Coelho, de 85 anos, médico e escritor. Hoje, ele não receita medicamentos: é a conversa com os pacientes que orienta as consultas. Ele luta para que a psiquiatria seja uma área mais humanizada.Cristiano MachadoSempre de bom humor, o psiquiatra Ronaldo Simões concilia a medicina com a atividade de escritor

Ronaldo dirigiu a ala de psiquiatria do Serviço de Saúde Médica de Minas Gerais nos anos 1970, e foi um dos primeiros a denunciar a tortura e os maus-tratos aos pacientes nessas unidades de saúde. “Muitos deles não tinham sequer nome na ficha. Jovens que tiveram filhos fora do casamento eram internadas e dadas como loucas pela família, que queria esconder a situação”.

Mas as histórias infantis e lúdicas, no entanto, continuam sendo as preferidas de Ronaldo. “Escrever não é um subterfúgio para mim, é o que me dá alegria", diz o médico, que ouve sobre transtornos mentais no consultório e fala de afeto para os pequenos nas escolas..

Ensinar crianças e adolescentes é o que também dá sentido à vida da imunologista e oncologista Irene Adams, de 77 anos. Holandesa, ela chegou a Minas Gerais em 1986 e sabe de cor o nome e a história dos pacientes. Adepta da conversa e do carinho, a veterana atende voluntariamente jovens em situação de vulnerabilidade social, especialmente vindos da rua ou de abrigos.

A médica tem um ar professoral. Irene não usa jaleco há anos. Na mesa, um computador e prontuários de papel convivem lado a lado. O espaço é repleto de publicações com figuras. “Se um paciente está com problemas no estômago, uso um livro com imagens do órgão para explicar. Quero que o jovem saiba que a saúde é dele. Minha missão é educar para a vida através da saúde”.

“O conhecimento proporcionado pela tecnologia não substitui a prática da vida diária” (José Guerra Lages, pediatra)

Em meio à tecnologia, afetividade segue em alta

Numa primeira impressão, os médicos mais antigos podem até parecer ‘congelados’ no tempo. Mas não é assim. Aos 81 anos e com mais de meio século de carreira, o pediatra José Guerra Lages, por exemplo, não dispensa o uso da tecnologia no consultório, que tem aparelhos de última geração.

Para aprender a lidar com a modernização, todos os dias o médico aprende novos recursos com alunos e médicos residentes do Hospital São Camilo, na capital. “Até tento acompanhar, mas não tenho a pretensão de achar que consigo entender tanto quanto os jovens”, diz. 

 Flávio Tavares

José Guerra não dispensa o contato mais próximo com o paciente

Apesar de achar os equipamentos fantásticos, como descreve, José garante que jamais menosprezará o raciocínio e o contato com o paciente. Para ele, a experiência não está nos livros didáticos. “O uso das mãos, do olfato, da visão, da audição e principalmente da afetividade continua tão importante como antes. O conhecimento proporcionado pela tecnologia não substitui a prática da vida diária”. 

Mesmo com os esforços, alguns dos médicos mais experientes da capital permanecem analógicos como forma de resistência. Sem celular, computador e e-mail, Alcino Lázaro da Silva é adepto do papel e caneta. Além das receitas, todos os 20 livros que publicou foram escritos à mão.

O cirurgião-geral é um dos médicos e professores mais antigos em atividade na capital. Ele conta com a ajuda dos ‘moços’ – como chama os residentes que orienta nos hospitais das Clínicas, da UFMG, e Cristiano Machado, em Sabará (Grande BH) – para realizar os procedimentos médicos que precisam ser feitos no computador. “Trabalho em equipe: eu faço a cirurgia e alguém digita”.Flávio TavaresAlcino Lázaro da Silva nem cogita parar de trabalhar: “paciente precisa de cuidado e toque. Isso não vai mudar”

Não ter se tornado um ‘médico digital’, não impede Alcino de exercer a profissão. Ele trabalha cerca de 12 horas por dia nos hospitais e no consultório. Nas horas vagas, anota, à lápis, as folhas de uma nova proposta curricular para o curso de medicina.

Idade avançada não é empecilho para que médicos mais antigos de Belo Horizonte continuem na ativa

Pacientes aprovam o carinho dos profissionais mais velhos

Quem é atendido com uma dose de carinho por parte dos médicos agradece, e muito. É o caso do agente social Anderson de Freitas Soares, de 29 anos. Recentemente, ele voltou para uma consulta com a imunologista Irene Adams, no consultório dela no bairro Bonfim, Noroeste de BH.

Anderson era morador de rua e tinha 12 anos quando a médica o atendeu pela primeira vez. No prontuário de papel, o nome e as fotografias do jovem retratam a trajetória de uma infância difícil. Assim como ele, pacientes que passaram pela pequena sala de Irene, quando mais novos, ainda podem fazer check-up com a especialista.

Agora, após 17 anos, o agente social deita na mesma maca para ser examinado. O carinho com que a imunologista o tratou desde o princípio fez com que ele  continuasse a se consultar com a médica.

“Atendendo eu me sinto bem. Fico feliz de prestar um serviço ao paciente” (Alcino Lázaro da Silva, médico cirurgião do SUS em Belo Horizonte há quase 60 anos)

“A doutora Irene fez parte da minha história no momento que eu ainda não entendia sobre a importância da saúde e de me cuidar. Eu não ligava para isso porque era morador de rua. Quando vim para a primeira consulta, ela me ensinou a olhar para mim com cuidado. Ela teve amor”, conta Anderson. 

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