Gerente denuncia racismo dentro de secretaria da PBH: 'lugar de negra é limpando chão'

Daniele Franco
01/08/2019 às 19:31.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:49
 (Reprodução/Facebook)

(Reprodução/Facebook)

Desde 2017 atuando como gerente de Prevenção à Violência e Criminalidade Juvenil na Prefeitura de Belo Horizonte, Etiene Martins, de 35 anos, foi às redes sociais na noite dessa quarta-feira (31) denunciar o racismo que declarou sofrer dentro da Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção (SMSP). A postagem viralizou e a servidora tem recebido milhares de mensagens de apoio de usuários revoltados com as atitudes relatadas.

As agressões começaram em novembro do ano passado, de acordo com o relato, quando um guarda municipal afirmou que "preto bom é preto morto" durante um seminário de prevenção ao crime e à violência.

Ao Hoje em Dia, Etiene contou que a afirmação do guarda durante um evento justamente sobre prevenção à violência lhe causou revolta, especialmente porque a fala foi proferida em um momento em que eram apresentados dados sobre o perfil dos adolescentes que morrem assassinados, que são majoritariamente negros. "No dia seguinte, o secretário Genilson Zeferino me enviou uma mensagem dizendo que já havia conversado com o prefeito e pediu para não dar publicidade e nem tomar medidas jurídicas e policiais, pedindo que eu ficasse tranquila porque a situação seria resolvida internamente", detalhou.

A gerente foi, então, orientada a apresentar uma denúncia contra o agente na corregedoria da Guarda Municipal. Um tempo depois, ela foi informada que o órgão considerou que não houve dolo e que a frase do homem era apenas "inapropriada para o local de trabalho". Nas palavras da gerente, "nem uma advertência ele levou". Etiene também contou que teve acesso à investigação da corregedoria e nela constava a confissão do guarda sobre a fala, o que ele afirmou ter sido uma brincadeira, de "pura alma".

Durante os meses que se seguiram, a servidora conta que viveu com medo do homem, que atuava como motorista na diretoria onde ela trabalhava e andava armado. "Comecei a resolver coisas externas do trabalho usando meus próprios recursos porque eu não podia sair com um homem que pensa como ele", declarou. Foi então que Etiene resolveu registrar um boletim de ocorrência.

"No dia seguinte ao dia em que fui à polícia, recebi um e-mail da minha chefe imediata, Márcia Alves, e foi quando tive certeza de que o corporativismo ia novamente mascarar a violência que eu sofri", contou. No e-mail, cujo print foi inserido na postagem de Etiene, Márcia diz que "depois de sua argumentação de hoje, você me faz constatar que para representar a SMSP é necessário um gerente branco como o Sebastião e lugar de negra é limpando chão".

Com esse episódio, ocorrido no dia 22 de maio de 2019, a gerente entrou com uma denúncia contra Márcia, que é diretora de Prevenção à Criminalidade da SMSP, na corregedoria da PBH. Apesar da formalização, ela não teve retorno e conta ter sido mal-tratada por servidores da corregedoria. "Estive lá na quarta e fui atendida no corredor, na presença de outros servidores, e o relator responsável se negou a me informar os prazos para a conclusão do processo, foi aí que resolvi denunciar no meu Facebook", contou.

Após a denúncia, Etiene foi transferida de seu local de trabalho perto da diretora para outro andar e esteve no último mês atuando na assessoria de comunicação da pasta.

A corregedoria da PBH entrou em contato com a servidora nesta quinta-feira (1º), após a repercussão da postagem, e marcou para 20 de agosto uma reunião para ouvir o depoimento dela sobre o caso.

Trajetória

Nomeada em 2017 para um cargo de confiança, comissionado, Etiene atribui à sua trajetória a escolha de seu nome para assumir a gerência. "Venho de movimentos sociais, já trabalhei como professora em presídios, onde a maioria dos internos são jovens negros, já fui coordenadora de Igualdade Racial da Prefeitura de Sabará, sempre fui militante contra o genocídio da população negra e não conhecia ninguém dentro do departamento, então creio que o que me levou à PBH foi meu currículo", afirmou.

Agora, Etiene não quer mais continuar trabalhando na secretaria e já enviou sua carta de exoneração. Para ela, é inviável trabalhar em um ambiente que prejudica sua saúde mental e tem o racismo institucionalizado. "Mantendo as pessoas que praticaram esses crimes, a SMSP está legitimando esse tipo de violência e tornando o racismo institucional, pois sem a punição devida, as pessoas continuam com esse tipo de atitude", denunciou.

Ao sair da pasta, a gerente espera que os projetos que ela tem aprovados lá dentro sejam continuados e que as pessoas responsáveis pelos crimes sejam responsabilizados.

Racismo estrutural

O episódio levantou questões que, de acordo com Etiene, só comprovam o quanto a sociedade brasileira tem o racismo em sua estrutura. "O racismo é o crime mais perfeito que existe, o Brasil está cheio de racismo, mas não tem nenhum racista. Não há ninguém no país preso por racismo". 

A gerente ainda denunciou que foi até a Delegacia Especializada em Crimes Raciais e os agentes tentaram fazê-la desistir da queixa, tentando convencê-la de que não se tratou de racismo e sim de injúria racial. "É mais uma violência que a gente sofre quando tentam nos tirar o direito de denunciar o que sofremos. É uma delegacia sem delegado, sem escrivão, e os agentes tentam te convencer a não registrar o boletim", reclamou. 

Outro lado

Márcia Alves foi procurada pela reportagem e negou veementemente a autoria do e-mail. Segundo ela, já foi feita uma ocorrência policial sobre o caso há mais de um mês na Delegacia de Crimes virtuais. Em nota, ela afirmou que o B.O. registrado traz "provas contundentes" de sua inocência. "No dia e horário do envio do e-mail estava em uma agencia bancária, a 3 quilômetros de distância do meu local de trabalho, realizando uma transação presencial com uso inclusive de minhas digitais e filmagens de minha presença no banco". (veja a nota na íntegra ao final da página)

Etiene, no entanto, afirma que nunca foi procurada por Márcia pra esclarecer os fatos e que técnicos da Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte (Prodabel) investigaram e descobriram que o e-mail saiu, sim, do computador da diretora. Perguntada a respeito da defesa de Márcia, Etiene disse que "as pessoas arrumam desculpas para muitas coisas. Eu não conversei com ela porque se eu reajo a uma violência tão grande, eu acabo me tornando a vilã", afirmou.

A SMSP, por sua vez, informou que está apurando com rigor as denúncias. No caso do guarda municipal, a pasta confirmou que o processo que investigou a fala dele foi arquivado. Já no caso da diretora de Prevenção, a SMSP disse que "a apuração detalhada do teor da denúncia segue seu trâmite na Subcontroladoria de Correição do Município". A análise da veracidade das mensagens de e-mail também esta sendo realizada, informou a nota.

Leia na íntegra as notas de defesa:

Márcia Alves

Venho publicamente me manifestar a respeito das publicações feitas com meu nome e colocando a minha pessoa em dúvida em relação a uma acusação e racismo.Tenho a esclarecer:

1-  Afirmo veementemente que o referido e-mail não foi escrito por minha pessoa e inclusive já registrei ocorrência policial sobre isso há mais de um mês. 

2- O referido e-mail a que se refere a denúncia é do dia 22 de maio de 2019 e chegou ao meu conhecimento no dia 28 de junho, mais de um mês após  ao seu envio. Durante todo esse período jamais fui notificada da existência dele ou qualquer outra pessoa tomou conhecimento deste e-mail.

3-      Imediatamente ao conhecimento deste e-mail procurei as autoridades municipais para solicitar que fosse apurada a origem do mesmo e assim como afirmei veemente jamais ter escrito este e-mail.

4-    Registrei Boletim de ocorrência na delegacia de crimes virtuais como consta no print abaixo, com provas contundentes de que no dia e horário do envio do e-mail estava em uma agencia bancária, a 03 quilômetros de distância do meu local de trabalho, realizando uma transação presencial com uso inclusive de minhas digitais e filmagens de minha presença no banco, além dos comprovantes com os horários de todas as transações, na presença do gerente do banco, ficando neste local por um período de 01 hora das 12h20min às 13h15min.

5-      Destaco que pelo padrão do e-mail assim como pelo histórico de Google o referido e-mail foi acessado às 12h30min de um computador, não de um celular. De todo modo dentro da agência não é possível usar o celular e como disse anteriormente, as imagens e comprovantes do Banco atestam que eu não estava no computador nesse horário.

6-    Apesar de todas estas provas materiais, tenho uma prova muito importante, de minha índole e ética, de 27 anos de trabalho como servidora pública na defesa e promoção de direitos de crianças, adolescentes e jovens, comprovada pelas inúmeras ações, projetos, funções e inclusive publicações a respeito do Genocídio de Jovens Negros na cidade de Belo Horizonte. Quando assumi cargos na politica pública coordenando Programas e Projetos sempre defendi publicamente os direitos à vida, à liberdade e à justiça. Durante toda a minha trajetória profissional compartilhei experiências com as comunidades mais vulneráveis, com as pessoas mais fragilizadas e dediquei toda a minha profissional a estas pessoas.

7- É necessário que essa fraude seja investigada e quem a cometeu seja responsabilizado.

8-   esse momento crítico em que vemos as redes sociais sendo utilizadas para destruir pessoas, desqualificar projetos de interesse daqueles que mais precisam, atacar pessoas sem nenhum critério de razoabilidade, (pode-se ver pelo conteúdo do e-mail publicado com meu nome que nenhuma pessoa escreveria algo desta natureza sabendo de todas as suas consequências) me vejo obrigada a restabelecer essa conta no Facebook para me defender de um ataque que considero grave e NECESSÁRIO A MINHA MANIFESTAÇÃO EM DEFESA DO DIREITO DE RESPOSTA, DO MEU COMPROMISSO PÚBLICO E DA MINHA LUTA DE ANOS PELA IGUALDADE NESSA CIDADE E NESTE PAÍS.

Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção

A Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção (SMSP) está apurando com rigor as denúncias de racismo feitas pela servidora. Esclarecemos que o episódio envolvendo o agente da Guarda Municipal ocorreu durante um evento promovido pela pasta, que reunia representantes de movimentos em defesa da igualdade racial com o objetivo de construir políticas voltadas para a redução do elevado índice de homicídios praticados contra jovens negros, tema que é alvo de atenção especial na SMSP.

Na ocasião, os procedimentos para a apuração interna da denúncia foram iniciados imediatamente, no âmbito da própria secretaria, por parte da Corregedoria da Guarda Municipal. A investigação minuciosa dos fatos resultou na conclusão pelo arquivamento do processo contra guarda municipal.

Com relação à acusação feita contra a diretora de Prevenção, a apuração detalhada do teor da denúncia segue seu trâmite na Subcontroladoria de Correição do Município. A análise  da veracidade de mensagens recebidas de e-mails institucionais, divulgadas em redes sociais pela denunciante,  está em curso com o mesmo rigor.

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