Infrator na adolescência e ex-viciado, mineiro vence desafios com ajuda da lei

Raquel Ramos e Renato Fonseca - Hoje em Dia
07/07/2015 às 06:33.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:47
 (Flavio Tavares)

(Flavio Tavares)

Quem vê o sorriso estampado no rosto de Edivando Correa de Santana, de 33 anos, e o acolhimento incondicional da família, nem de longe imagina a triste e árdua caminhada percorrida. Hoje, exemplo para a esposa, Seunghye, de 37, e as filhas Manuela, 6, e Gabriela, 3, ele viveu parte da juventude no submundo do crime.

Filho de pai alcoólatra e mãe constantemente fora – obrigada a trabalhar para sustentar a prole de oito crianças –, Edivando passou a infância na favela Frigo Diniz, em Contagem (Grande BH). Não demorou para largar a escola, viciar-se em drogas e praticar assaltos.

O uso de tíner e cola rapidamente deu lugar a maconha, cocaína e crack. Para sustentar o vício, furtava supermercados. Aos 9, já era próximo do dono da boca de fumo do morro. Daí, foi um pulo para agir armado.

Dois anos depois, integrava uma gangue que aterrorizava o comércio e empresas do entorno. Já aos 13, e apreendido três vezes pela polícia, foi levado por um padre para morar na paróquia. Engana-se que aquilo foi suficiente. O acesso ao templo facilitava, agora, o roubo do dízimo. Encaminhado à antiga Febem, Edivando levou anos para se recuperar. Casos de ressocialização como o dele não são raros, embora as dificuldades de fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sejam um empecilho. Na segunda reportagem da série sobre os 25 anos do ECA, veja os desafios da reinserção do infrator na sociedade.

É possível resgatar jovens infratores, e o que não faltam são exemplos

Os meses de encarceramento na extinta Febem de Sete Lagoas não foram suficientes para o então infrator Edivando dar a volta por cima. Ao contrário, pioraram a situação. “Lá era a escola do crime. A convivência com adolescentes extremamente perigosos faz você sair pior do que entrou”, relata. De volta às ruas, ele usava cada vez mais drogas e praticava assaltos.

Somente após outra medida socioeducativa, dessa vez na Casa de Amparo Jocum, em BH, um novo horizonte se abriu. Edivando voltou a estudar, participou de oficinas profissionalizantes e fez cursos técnicos de eletricista e cabeleireiro, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O trabalho em um salão de beleza foi o primeiro emprego. Hoje, está casado com a coreana Seunghye, tem duas filhas e cursa serviço social.

Acolhimento

Amparo e assistência integral para evitar que o menor infrator de hoje se transforme no bandido de amanhã são claramente previstos no ECA. Os mecanismos legais para reinserir o jovem na sociedade podem vir em meio aberto, com acompanhamento profissional ou prestação de serviços educativos. Em casos mais graves, na forma de internação.

O educador Wittalo Caldeira participa de projetos sociais, como o Fica Vivo, na busca pela recuperação de adolescentes. “O crime é um processo. Primeiro o menino rouba e depois pode até matar. Quando o acolhimento é feito no início, e da forma correta, são grandes as chances de recuperação”, diz ele, que também já se envolveu na criminalidade quando jovem.

D.D.R., de 16 anos, é um dos menores atendidos por Wittalo. Há três anos, ele se tornou “aviãozinho”, responsável pela entrega de drogas, nas imediações do aglomerado onde mora. Chegou a parar de estudar e a viver do lucro do tráfico. “A família tentava ajudar, mas era complicado”.

D. diz ter encontrado na arte e nas pessoas que o acolheram a motivação necessária. “Quando alguém acredita no seu potencial e você tem oportunidade de acesso ao lazer e cultura, tudo muda”. Hoje, o adolescente participa de oficinas, tem acompanhamento profissional e sonha em ser músico. Cheio de orgulho, diz estar compondo um rap. A música contará histórias de superação na favela.

Internação prevista apenas em casos mais graves

Em tese, a internação de adolescentes deveria ser o último recurso a ser adotado: apenas nos casos em que o ato infracional envolvesse grave ameaça ou violência, por reincidência ou por repetido descumprimento de medidas anteriormente impostas.

Mas nem todos os municípios mineiros têm estrutura pronta para oferecer o serviço em meio aberto, explica Célia Nahas, coordenadora de políticas pró-criança e adolescente, da Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Como consequência, vários menores acabam indo para os centros de internação administrados pelo Estado.

Hoje, problemas como superlotação e estrutura deficiente prejudicam a recuperação. Além disso, a falta de técnicos e agentes nas unidades também é apontada como uma das principais causas para que adolescentes voltem a entrar em conflito com a lei.

“Todo mundo que trabalha nesses centros tem que estar empenhado em ajudar o menor a se ressocializar. Mas o serviço em Minas é feito com poucos funcionários, o que certamente interfere na eficácia do sistema”, avalia Keifferson Pedrosa, diretor do Conselho Nacional de Servidores do Sistema Socioeducativo.

Promessa

A própria Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) reconhece o déficit. Faltam 1.214 agentes socioeducativos e 115 técnicos em Minas. No momento, um concurso está em andamento para preenchimento das vagas. Além disso, a Seds articula a retomada de quatro obras de centros de internação, que, juntas, terão capacidade de acolher 160 menores.

Para o desembargador Tarcísio Martins, que durante 11 anos foi juiz da Vara da Infância na capital, readequações na lei poderiam contribuir para a recuperação dos infratores. “O prazo máximo de internação, de três anos, deveria ser estendido em alguns casos”. Outra mudança sugerida é a criação de um lugar de acolhimento para adolescentes que saíssem da internação.

Ato infracional - Conduta descrita como crime ou contravenção penal

Medidas de recuperação previstas no ECA:

- Advertência (verbal): reduzida a termo e assinatura. Pode ser aplicada sempre que houver prova da materialidade e indícios suficientes da autoria

- Obrigação de reparo de dano:  Quando um patrimônio é danificado, adolescente deverá restituir o bem, promovendo o ressarcimento ou compensando o prejuízo da vítima

- Prestação de Serviço à Comunidade (PSC): Realização de tarefas de interesse geral, por até seis meses, junto a entidades, programas comunitários ou governamentais. Máxima de oito horas semanais - Liberdade Assistida (LA): Aproveitamento e frequência escolar são supervisionados. Jovem recebe orientação de profissionais e pode ser inserido no mercado de trabalho. Fixada por pelo menos seis meses

- Inserção em regime de semiliberdade: Pode ser determinada desde o início ou como forma de transição da internação para o meio aberto. Menor pode fazer atividades externas, mas será diariamente acompanhado

- Internação em centro de ressocialização: Privação da liberdade por até três anos. Só pode ser aplicada quando o ato infracional envolver grave ameaça ou violência, reincidência ou descumprimento repetido de medidas anteriores SCORES

 

34: Unidades socioeducativas existem em Minas; sendo 24 centros socioeducativos, nove casas de semiliberdade e duas Dopcad’s. 32%: é a superlotação do sistema, que tem 1.891 jovens internados ou em regime semiaberto para apenas 1.422 vagas

407 MUNICÍPIOS mineiros não oferecem a Liberdade Assistida (LA) em meio aberto

Fontes: ECA, Seds e CAO-DCA 


Conversa com Murillo José Digiácomo

“Aprovar a redução da maioridade seria uma derrota para a sociedade”

Três em cada dez adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas voltam a cometer atos infracionais. A taxa de reincidência e o temor da sociedade de se tornar vítima de menores infratores reacendem a discussão em torno da redução da maioridade penal. Recentemente, um projeto de lei que altera a Constituição foi aprovado em 1° turno na Câmara dos Deputados, mas será novamente apreciado. O procurador de Justiça Murillo Digiácomo, do Paraná, é categórico: “Aprovar a redução seria uma derrota”. A defesa dele é sustentada em 20 anos de trabalho no Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Experiente no assunto, acredita que a alteração tiraria qualquer chance de recuperação desses garotos.


Por que o senhor se opõe à redução da maioridade?
A maior parte dos especialistas concorda que isso aumentaria a violência porque estaremos jogando nossos jovens precocemente no sistema penal, que tem uma proposta meramente punitiva. O sistema socioeducativo é diferente. Prevê a punição e a responsabilização integral do adolescente com mais de 12 anos, mas também oferece alternativas de vida.


As atuais medidas conseguem recuperar esses meninos?
O problema não está na medida, mas na aplicação. Hoje, a dificuldade é executar como prevê a lei. Há unidades de internação que reproduzem o que é feito no sistema prisional. Não oferecem atividades, profissionalização ou escolarização.


Se a lei é tão clara, como cumpri-la?
Investir recursos públicos deveria ser prioridade. Assim, equipamentos, programas e profissionais estariam preparados para receber esses jovens. Mesmo que o sistema não esteja funcionando como deveria, os índices de reincidência são de 30%, enquanto no sistema penal a taxa é superior a 70%. Esses números já mostram qual que é o melhor caminho.


Corremos o risco de ver menores encarcerados em cadeias comuns caso a PEC de redução seja aprovada?
Ou serão encarcerados no sistema comum ou serão colocados em liberdade.


32% é a superlotação do sistema socioeducativo no estado, que tem 1.891 jovens internados, ou em regime semiaberto, para 1.422 vagas

34 unidades socioeducativas existem em Minas, sendo 24 centros de internação, nove casas de semiliberdade e duas delegacias


 

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