Lei que só permite ausência do cobrador de ônibus no período noturno é desrespeitada

Anderson Rocha
arocha@hojeemdia.com.br
06/09/2017 às 06:00.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:26
 (PEDRO GONTIJO)

(PEDRO GONTIJO)

São quatro horas da manhã na Estação Vilarinho, em Venda Nova. Passageiros aguardam condução, se protegem do frio e reclamam: faltam cobradores nos ônibus. Sem o agente de bordo, cabe ao condutor do coletivo cobrar a tarifa. Atualmente, a lei permite a ausência do profissional da meia-noite às 4h59. No entanto, a norma tem sido descumprida em viagens fora desse horário.

Nos últimos dias, ficaram sem trocador nas linhas 635 (Estação Vilarinho/ Jardim dos Comerciários), 636 (Estação Vilarinho/ Jardim Europa), 638 (Estação Vilarinho/ Minascaixa) e 641 (Estação Vilarinho/ Serra Verde). Todas são alimentadoras, ou seja, fazem o percurso de um determinado bairro à estação de integração.

A reportagem do Hoje em Dia acompanhou a saída de alguns ônibus no terminal Vilarinho e constatou a irregularidade. “O cobrador faz bastante falta. Às vezes, o passageiro pede uma informação e você esquece de ajudá-lo. É muita coisa para fazer. O trânsito, que já é estressante, fica pior”, relatou um motorista, que ainda acrescentou: “no fim do dia, o cansaço vem em dobro”.

Outro profissional, que também pede para não ser identificado por medo de represália, fala sobre a dificuldade em lidar com o dinheiro. “A lei diz que o motorista não pode usar celular por motivo de atenção, mas a gente mexe com dinheiro, que tira toda a nossa concentração”, afirma. Os condutores são categóricos ao afirmar que aceitam a situação por medo de perder o emprego.

Passageiros também reclamam da ausência do cobrador. A gari Rosimar de Paiva Toscano, de 50 anos, é usuária da linha 638. Ela notou que, desde a última semana, o condutor acumula a função no ônibus que pega diariamente, às 5h. “É péssimo. A função do motorista é dirigir, não cobrar passagem. Ele leva vidas, não pode ficar distraído com outras coisas”.

A situação é pior quando o passageiro não utiliza o cartão BHBUS. Em uma das viagens, o motorista não tinha troco para o jardineiro Alcival Ferreira, de 32 anos, que só tinha uma nota de R$ 20. “Ele precisa trabalhar preocupado em conseguir trocar o dinheiro. Isso é falta de respeito com a gente, que também é trabalhador”, afirma. 

Grave

Segundo o especialista em Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG), Humberto Marcial, a retirada dos agentes de bordo é grave. Para ele, além de ilegal, representa uma sobrecarga aos motoristas. “O empregador deve eliminar os riscos inerentes à atividade do trabalhador. Ao passar uma carga (de trabalho) maior, com outras tarefas, como fazer conta e fornecer troco, a empresa está criando mais riscos, como o porte do dinheiro e a questão da condução veicular”, explicou.

Embate já dura quase três décadas, segundo sindicato

A luta de motoristas e cobradores para reverter a situação é antiga. Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Belo Horizonte e Região Metropolitana (STTRBH), José Márcio Ferreira, o embate acontece desde a década de 1990.

Conforme Ferreira, a brecha está no Código Brasileiro de Ofícios (CBO), norma que autoriza motoristas de ônibus a cobrar a passagem, desde que estejam com o veículo parado. “Mas sabemos que isso não acontece. E além de colocar em risco a vida de passageiros, as viagens se tornam mais demoradas”, afirma. 

O sindicalista ressalta que quatro ações já foram impetradas na Justiça. No entanto, todas foram derrubadas. “O cobrador tem um papel social. Ele ajuda pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência visual, por exemplo. Não é só a cobrança da tarifa. É uma grande perda para todos”, diz José Márcio Ferreira.

Segundo a BHTrans, a falta do trocador nos ônibus da capital pode render uma multa de R$ 490,40; empresa que gerencia o tráfego de BH diz que as reclamações são “mínimas”, mas não forneceu dados de denúncias recebidas

Sem estatística

O número de reclamações sobre a ausência de cobradores nos ônibus é “mínimo”, segundo a BHTrans. Os dados deste tipo de ocorrência não foram apresentados. No entanto, a empresa afirma que todas as denúncias são apuradas. Reclamações podem ser feitas por meio do telefone 156 ou pelo site bhtrans.pbh.gov.br. A ausência do profissional pode render uma multa de R$ 490,40.

O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (SetraBH) informou que a circulação dos veículos sem o cobrador, no horário noturno, é amparada por uma lei de 2012. “As retiradas do agente de bordo se devem única e exclusivamente à significativa redução no número de usuários em linhas urbanas. A medida não representa estudo ou teste para a sua adoção em outras linhas e não traz risco de demissões ao sistema de transporte coletivo”, informa nota enviada.

Segundo a Lei 10.526, de 3 de setembro de 2012, ônibus podem rodar sem trocador em horário noturno, além de domingos e feriados. O profissional extinto deve ser realocado em outros postos de trabalho, como bilheterias de estações. Os veículos deverão garantir o pagamento com o cartão BHBUS

Ainda conforme o Setra, a retirada ocorre apenas “em linhas e em horários nos quais é legalmente permitida”. O sindicato informou que não seria possível verificar os dados de cada veículo que rodou nos últimos dias para confirmar a presença, ou não, dos trocadores. Das quatro linhas citadas pela reportagem, o Setra garantiu que, ontem, duas estavam com o agente. Já sobre as outras duas, o sindicato aguardava uma confirmação. Não houve retorno até o fechamento desta edição.

Além Disso

A sobrecarga de tarefas é fator que ataca diretamente a saúde do profissional. O principal problema é o estresse. O transtorno pode desencadear doenças, como a hipertensão, e agravar outras, como o diabetes. As explicações são da médica Jaqueline Paschoal Azan de Castro, que trabalha com medicina do trabalho há 24 anos. 

“Dependendo da carga de trabalho, pode-se desenvolver um quadro conhecido como estafa. A pessoa pode parar no hospital, necessitando de um atendimento de urgência. O trânsito, a necessidade de receber pagamentos e a preocupação com assaltos são situações que estressam o motorista”, diz. Segundo ela, toda inclusão de tarefa que não é natural da função de um profissional deve passar, antes, por um treinamento.

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