Liberada por liminar, busca por 'cura gay' é recorrente nos consultórios de Minas

Tatiana Lagôa
tlagoa@hojeemdia.com.br
19/09/2017 às 20:59.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:38
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

A dificuldade de aceitar a preferência por homens levou o belo-horizontino João* aos 18 anos buscar a ‘cura gay’. Sem o resultado esperado, hoje o jovem, com 28, faz tratamento para reduzir os danos psicológicos causados em quatro anos de terapia. O rapaz não está sozinho no que diz respeito à negação da homossexualidade. Inclusive, a busca pela reversão sexual, prática proibida pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999, ainda é recorrente nos consultórios mineiros.

“Eu ainda tenho receio do que vai acontecer comigo se eu morrer. Busco no tratamento equilibrar a religiosidade com minha sexualidade. Já pensei que não fui curado porque Deus não gosta de mim” (João, 28 anos, que buscou 'cura gay')

O debate em torno da “cura gay” reacendeu polêmica após liminar concedida pelo juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho. A decisão abre brecha para que psicólogos ofereçam a terapia nos consultórios, mas o CFP garante que irá recorrer do despacho.

“Se a orientação sexual não é doença, não é passível de cura. Uma pessoa submetida a um procedimento sem resolução causa uma inadequação (ao meio em que vive) maior”, afirma Dalcira Ferrão, do Conselho Regional de Psicologia (CRP) de Minas Gerais.

Pressão

Mesmo assim, a pressão social para adequação ao padrão tido como ideal tem levado muita gente aos consultórios em busca de reversão sexual. “A demanda chega muitas vezes da família de adolescentes que buscam respostas sobre a sexualidade deles. Há casos também em que a própria pessoa tenta reverter a situação com medo do preconceito em que será exposta”, afirma.

Foi exatamente o que aconteceu com João, que pediu para ter a identidade preservada. Quando o jovem estava no ápice do desespero, um psicólogo que atendia na região Nordeste da capital prometeu ser capaz de torná-lo heterossexual. “Ele repetia várias vezes que eu não era gay, que aquilo era fruto de um trauma de infância porque meu pai era ausente. No fim, fiquei com raiva do meu pai, me achando inferior e perdi a confiança para tomar decisões”, conta.

“A homossexualidade não tem cura, mas o preconceito tem. Por isso, oriento que familiares passem por tratamento para que possam enfrentar as barreiras sociais conjuntamente” (Samuel Silva, psicólogo)

Sem acesso a um profissional que prometesse a ‘cura’, o jornalista Gabriel Peixoto, de 21 anos, buscou a saída na religião. “Eu me sentia culpado ao sentir atração por outros meninos. Cheguei a ficar ajoelhado até meu joelho doer pedindo a Deus que eu me interessasse por uma mulher”.
Até mesmo quando decidiu parar de lutar contra a própria sexualidade, Gabriel teve recaídas. “Fui a uma boate com um amigo e nos beijamos. Senti tanta culpa que comecei a distribuir lanche para morador de rua para me redimir do pecado”, diz.

Todos os dias

Casos como esses chegam diariamente no consultório do psicólogo Samuel Silva. “Quem busca terapia é porque está sofrendo. As pessoas chegam com uma carga de culpa tão grande por causa da não aceitação social que associam o sofrimento à sexualidade e pedem que isso seja mudado”, frisa.

Nesses casos, Samuel indica o tratamento para que a pessoa se aceite e tenha força para se impor diante os atos de preconceito. “Já temos provas que não há eficácia em tratamentos de cura gay. A pessoa exposta a essas terapias pode chegar a uma depressão tão profunda e até tentar suicídio”, alerta. 

“Não são as pessoas que devem dizer que precisam ser curadas ou um juiz. São profissionais de psicologia. Isso tudo tem no fundo um discurso fundamentalista, religioso e conservador” (Dalcira Ferrão, do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais)

No passado, conta ele, dentre as terapias usadas estavam remédios que causavam ânsia de vômito enquanto o terapeuta mostrava fotos de pessoas do sexo oposto. Quem passava pelo tratamento sentia vontade de regurgitar toda vez que estava em uma situação mais íntima. “Elas não viraram heteros e sim ficaram traumatizadas”, conclui.

Grupo vai acionar a Justiça para atuar como ‘amigo da corte’

Movimento nacional, o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS) promete entrar com um pedido na Justiça para atuar como “amigo da corte” no processo que avalia a possibilidade de terapias de reversão sexual nos consultórios. Se a solicitação for aceita, ativistas da causa homossexual poderão incluir argumentos contrários à liminar concedida para subsidiar a decisão do judiciário. 

A decisão proferida na última sexta-feira atendeu pedido da psicóloga Rozangela Alves Justino em processo aberto contra o Conselho Federal de Psicologia. O argumento acatado pela Justiça foi que a resolução da entidade de classe que não permite o tratamento restringiria a liberdade científica. 

Competências

Mas para o advogado Paulo Iotti, do GADVS, a liminar foi equivocada. “Não existe ex-gay”, afirma. Por isso, ele está impetrando a ação para que possam colaborar com o processo, o que é garantido no artigo 138 do Novo Código do Processo Civil. “Amigo da corte é a pessoa ou entidade que tem condições de levar informações para agregar no processo”, explica. 

O advogado Thiago Coacci, membro da Comissão de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considera a liminar incorreta por extrapolar as funções do magistrado. “Cabe ao conselho regulamentar a profissão. Na liminar, o juiz mantém o regulamento, mas abre espaço para que o documento seja questionado. Isso é incoerente”, defende.

Repercussão

A liminar que abre brecha para a oferta da terapia de reversão sexual nos consultórios provocou uma mobilização nas redes sociais de artistas, psicólogos e órgãos estaduais e federais. Os Ministérios do Turismo e do Esporte, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-SP) e os governos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais aderiram à campanha virtual que tem utilizado as hashtags #TrateSeuPreconceito e #HomofobiaÉDoença.

Já o Ministério do Esporte publicou a frase “Esporte sem preconceito”, também com as letras coloridas, e utilizou a hashtag #TrateSeuPreconceito. 

O governo mineiro também aproveitou a polêmica para lembrar que o Estado disponibiliza o registro de homofobia como motivação de um crime. “A medida adotada em Minas ajuda a elaborar um diagnóstico mais detalhado da violência relacionada a preconceitos e, assim, embasar políticas de combate a esses crimes. #TrateSeuPreconceito #CombateÀHomofobia #HomofobiaÉDoença”, disse.

*Nome fictícioEditoria de Arte

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