Maioria dos 295 mil menores trabalhadores de Minas estão na irregularidade

Raquel Castro e Renato Fonseca - Hoje em Dia
08/07/2015 às 06:32.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:48
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

As mãos são pequenas e ágeis. Enquanto a esquerda acena para a clientela nos carros, a direita usa uma fina vareta para fazer malabares e equilibrar o bastão em chamas. A performance diária de Joaquim* em sinais de trânsito da capital arranca sorrisos dos motoristas e lhe garante uns trocados. Porém, a exibição sai cara.

O garoto de apenas 13 anos anda de roupa velha, rasgada e suja de fuligem. Tem os dedos calejados, as unhas quebradas e, como resultado das apresentações, queimaduras pelos braços. As marcas espalhadas pelo corpo do menino revelam a atividade insalubre e ilegal, o trabalho infantil.

Precoce

Morador do Aglomerado da Serra, na região Centro-Sul de BH, Joaquim é mais um que trocou atividades essenciais de criança, como brincar e estudar, por dinheiro. E pior, faz isso desde os 9 anos. “Dá para tirar uns 20, 30 conto. Daí, gasto no fliperama, compro biscoito. Às vezes, entrego pra minha mãe”, conta o adolescente, que abandonou a escola há mais de um ano.

Restrições

Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), qualquer tipo de ofício é proibido a quem tem menos de 14 anos. A partir dessa idade, o serviço passa a ser autorizado, com restrições. Até os 16, só como aprendiz e, depois disso (até completar 18), apenas em atividades e horários específicos.

Em Minas, o trabalho infantil é realidade para 295 mil menores, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Eles têm de 5 a 17 anos e, conforme órgãos de proteção, a maioria exerce atividades de forma ilegal.

Especialistas em educação e no combate à erradicação do atividade juvenil são unânimes em apontar como principal desafio desconstruir a ideia da sociedade de que “antes trabalhar do que roubar”.

Inimigo da escola

Felipe* tem 15 anos, estuda em escola pública e mora em Ribeirão das Neves. De terça a sexta-feira, pega ônibus na cidade da Grande BH rumo à capital. Ambulante em um grande corredor de tráfego na zona Sul, ele “costura” entre os carros parados no semáforo para vender biju. Consegue até R$ 60 por dia.

O dinheiro é muito bem-vindo em casa, afirma o garoto, reprovado duas vezes na escola e ainda “preso” no ensino fundamental.

A responsabilidade por Felipe e por outros milhares de jovens brasileiros na mesma situação não recai somente nas costas do poder público. Segundo o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a família e a sociedade também têm o dever de assegurar direitos básicos à infância, como educação e lazer.

Mesmo com duas décadas e meia de vigência, as instituições falharam ao não fazer cumprir o estatuto, avalia a coordenadora do Fórum de Erradicação e Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (Fectipa), Elvira Cosendey. “O trabalho infantil é um fenômeno multifacetado e, enquanto todos não colaborarem, continuará existindo”.

Dentro de casa

As falhas começam dentro de casa. Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Elaine Nassif afirma ser comum a própria família apoiar a ilegalidade. “Muita gente fala: ‘ele é meu filho. Eu que sei como criá-lo’. Mas estão errados, porque esse menino também é detentor de direitos”, diz.

Visões dissonantes da lei a respeito do trabalho precoce também são reproduzidas pela sociedade. De acordo com Elaine Nassif, há quem acredite ser melhor uma criança trabalhando do que na rua, exposta à violência. Por uma questão biológica, explica, a rotina laboral pode afetar até o desenvolvimento da pessoa.

Nem pensar

As atividades mais danosas estão catalogadas na Lista Tip, aprovada em 2008 com os nomes das piores formas de atividade infantil. Além de descrever os riscos inerentes a cada ocupação, mostra aquelas proibidas a qualquer pessoa menor de 18 anos.

Integram a lista, por exemplo, trabalhos ao ar livre, sem proteção à radiação solar, à chuva e ao frio. Ambiente hostil a que Joaquim e Felipe são cotidianamente submetidos nos semáforos de BH.

A mão de obra infantil mais encontrada na cidade tem relação justamente às atividades ao relento, como ambulante, segundo a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Os casos se concentram nas regiões Centro-Sul e Leste, onde há mais bares e movimento de carros.

Os números de menores nesta situação assustam. O Censo mostrou que 3.818 pessoas de 10 a 13 anos trabalhavam em BH em 2010. Muitos reproduzem uma triste tradição de família. “Há crianças que estão na quarta geração de trabalho infantil”, afirma Elvira Cosendey, do Fectipa.

Na avaliação dela, o ciclo da pobreza pode ser quebrado com a escola integral e o envolvimento da família. Também é preciso fiscalização para identificar onde esses garotos estão. “Alguns casos são mais difíceis de ser flagrados porque os meninos se encontram em área de difícil acesso, no trabalho doméstico. Mas há menores que estão nas ruas”.

Minas Gerais lidera ranking de jovem aprendiz no país

Na contramão da ilegalidade, exemplos não faltam para comprovar a possibilidade de conciliar estudo e trabalho. Minas Gerais lidera o ranking nacional de jovens aprendizes. São 13.499 contratados no Estado, à frente de São Paulo, com 12.006, e Rio Grande do Sul (6.221).

Aos 16 anos, Raquel Kelly Ferreira da Costa é aluna da Escola Estadual Presidente Antônio Carlos, no bairro Sion, região Centro-Sul de Belo Horizonte. A menina, que tem boas notas na instituição de ensino, ganha uma bolsa de estudos e vale transporte graças a um estágio de meio horário no Conselho Tutelar do bairro Floresta. Ela pretende fazer faculdade e enche de orgulho a mãe, Laudicéia.

“É possível, sim, conciliar. Aqui fico na recepção e localizo os arquivos pedidos pelos conselheiros. É uma oportunidade, basta ter foco e dedicação”, diz Raquel, que acrescenta: “quero muito estar numa universidade e cursar medicina. Vou batalhar por isso”.

Na lei

Para ser considerado aprendiz, o adolescente deve estar matriculado na escola, ter a carteira assinada e ainda fazer curso de capacitação em uma instituição de aprendizagem como Senai, Senac ou Sesi.

“Nesse local, ele aprenderá a parte teórica e, na empresa, a prática”, explica a procuradora do Ministério Público do Trabalho, Elaine Nassif.

Se a prática for muito perigosa ou colocar em risco a saúde do estudante, ele deve executá-la em ambientes simulados.

Direto ao ponto

Proposta para liberar trabalho aos 14

Três Propostas de Emendas à Constituição (PEC) que pretendem reduzir a idade mínima para o trabalho infantil tramitam, atualmente, na Câmara dos Deputados, em Brasília. As PECs 18/2011, 35/2011 e 274/2013 sugerem alterar o artigo 7º, inciso 33 da Constituição Federal. O texto hoje em vigor permite a adolescentes com mais de 16 anos entrar no mercado de trabalho desde que o serviço não seja em horário noturno, local perigoso ou insalubre. Também estipula que os que têm entre 14 e 16 só possam trabalhar na condição de aprendiz. O argumento para mudar a regra é que essas limitações acabaram empurrando vários jovens para o mercado informal e até mesmo para as drogas.

34 mil jovens menores de 18 anos trabalham em minas como empregada doméstica; na capital, são cerca de 1.700

40% foi a redução do trabalho infantil em Minas Gerais nos últimos cinco anos, segundo o IBGE

 5% Das crianças Brasileiras com idade entre 10 e 13 anos trabalham, de acordo com o IBGE

 “Os motivos pelos quais os jovens não devem trabalhar são de ordem médica. Até os 18 anos, o corpo humano está em formação e o trabalho pode

prejudicar esse processo” Elaine Nassif - Procuradora do Ministério Público do Trabalho


*Nomes fictícios
 

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