Metade das 14 mil pessoas em situação de rua que vivem em Minas estão em BH

Raul Mariano*
09/01/2019 às 20:40.
Atualizado em 05/09/2021 às 15:57
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

Metade dos moradores em situação de rua em Minas estão em Belo Horizonte. Dados do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) revelam que, dos mais de 14 mil sem-teto no Estado, pelo menos 7 mil vivem na capital mineira.

A prefeitura contesta os dados e afirma que a cidade tem 4.553 pessoas desabrigadas – em julho de 2017, o mesmo número foi informado ao Hoje em Dia. De acordo com o município, a discrepância nas medições acontece porque essa população “é flutuante”. 

São pessoas que, em muitas situações, vêm do interior à procura de trabalho e, depois de se envolverem com o crack – droga que é unanimidade entre os relatos ouvidos pela equipe de reportagem – acabam perdendo o controle, indo morar em barracas de madeira e lona ou simplesmente sob as marquises.

Para a supervisora de Projetos da Pastoral de Rua de BH, Claudenice Rodrigues Lopes, o que acontece na metrópole reflete o crescimento da pobreza no país. “Tem gente nova chegando o tempo todo. Às vezes, famílias inteiras, que já viviam na rua em outras cidades”, relata. “São populações errantes, que vão migrando até chegar aqui”, destaca Claudenice.

Ela classifica o cenário como “preocupante” e garante que o trabalho realizado em prol dos desabrigados é importante, mas insuficiente se não vier acompanhado de “políticas estruturantes”, envolvendo trabalho, renda e moradias populares.

Conforme o MDS, as 7 mil pessoas foram identificadas no Cadastro Único como vivendo em situação de rua. Elas estão na extrema pobreza e utilizam locais públicos e as áreas degradadas como moradia temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite

Recém-chegados

Há apenas quatro meses morando em uma barraca em frente ao abrigo Tia Branca, no bairro Floresta, região Leste de BH, a cozinheira desempregada Ana Paula Souza da Silva, de 36 anos, veio de Maxacalis, no Vale do Jequitinhonha, para viver com o novo companheiro na capital.
Em tratamento contra a depressão e o vício em cocaína, ela revela que os quatro filhos que teve com o ex-marido ficaram na cidade natal e não sabem que a mãe está na rua. “Minha separação foi trágica e acabei abusando da droga. Penso em voltar, mas ainda não acho que seja a hora”, afirma a mulher. 

Já Rogério Amaral, ex-professor de educação física que alega viver “à base de remédios”, está há menos de um ano morando em barracas de amigos em várias regiões da cidade. 

Ele conta que, por causa da dependência do crack, acabou entrando em atrito com a mãe e as irmãs. “É impossível estar com a família nessa condição, ninguém aceita e a gente acaba saindo de casa”, explica.Flávio Tavares
“Não tem como viver na rua e não beber, não fumar, não usar algo que faça mal à saúde. A rua é isso. Ela te obriga a consumir essas coisas para você sobreviver. O importante é não virar bandido, não fazer mal a ninguém. O que a gente sonha é em conseguir sair daqui para uma casinha nossa. Mas as coisas não vêm da noite para o dia. É tudo aos poucos” (Ademilson Oliveira Santos)

Vícios

O álcool é outra droga de uso comum para grande parte dos moradores em situação de rua. Para muitos, a bebida é considerada um auxílio para enfrentar o frio das madrugadas. 

Greice Hellen Cardoso, que há sete anos vive nas ruas, alega que essa é uma das formas adotadas por muita gente para “suportar a própria vida”. Mãe de três crianças que estão com a avó, em Contagem, na Grande BH, ela chora quando fala do distanciamento dos filhos.

“Vivo uma espécie de extermínio particular, um suicídio lento. Meu desejo é fazer o curso de letras, ser escritora”, sonha, enquanto emprestava para um amigo um isqueiro usado para acender o cachimbo e fumar crack pela segunda vez naquele dia. Flávio Tavares / N/A

“Quase ganhei minha última filha aqui na rua, embaixo de uma árvore. Ainda quero escrever um livro só para contar todas as histórias que já vivi, principalmente para aqueles que tiverem a curiosidade de ler minhas loucuras. Eu me inspiro nas escritoras brasileiras. Minhas preferidas são Clarice Lispector e Zibia Gasparetto” (Greice Hellen Cardoso)

Vagas

Apesar de crescente, o número de vagas disponíveis nos abrigos em Belo Horizonte não comporta a atual demanda. Hoje, há 1.006 leitos para adultos e idosos com trajetória de vida nas ruas e 48 para crianças e adolescentes em abrigos. Todos estão preenchidos.

Crise econômica

O êxodo para as grandes capitais em momentos de crise econômica é um fenômeno comum. Quem afirma é o professor Carlos Horta, do Departamento de Ciência Política da UFMG.

Ele destaca que, no entanto, não há trabalho suficiente para todos os desempregados, o que pode colocar mais pessoas nas ruas. “Há, inclusive, os que tentam empreender diante da situação e acabam tendo o mesmo fim”, acrescenta. 

Para a socióloga e professora da UFMG Danielle Cireno, um serviço de abordagem mais individualizado, com foco nas particularidades de cada morador de rua, pode gerar resultados mais efetivos. 

Ela explica que, além disso, BH tem características que diferenciam a cidade de outras capitais. “Aqui a rua é segura, as calçadas são largas, chove pouco. É completamente diferente de São Paulo ou Recife. Há até pessoas com nível superior entre essa população”, destaca a socióloga.

Danielle Cireno enfatiza que só um novo momento de crescimento econômico poderá, efetivamente, tirar as pessoas dessa condição. “A volta da geração de empregos é imprescindível”, garante. 

Resistência

Quem cresceu na rua e aprendeu a se virar para sobreviver lamenta a falta de oportunidades. Ademilson Oliveira Santos, de 26 anos, é um exemplo de resistência contra as adversidades da vida. Baiano de Itamarati, ele nasceu com má-formação nas pernas e se desligou da família ainda na infância, quando foi morar nas ruas e chegou a BH.

Os vícios não demoraram a surgir. A cachaça primeiro, seguida da maconha e, por fim, o crack. Após morar em diversas regiões da capital, o rapaz construiu uma barraca às margens da Via Expressa. Ele diz que só pretende sair para uma casa onde possa “ter mais dignidade”. 

“Não dá para explicar o que é viver na rua, só vivendo para saber. O tempo passa, muda presidente, governador, prefeito e não sei mais o quê, mas a falta de oportunidade continua igual”, critica.

(*Colaborou Mariana Durães)

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