Moradora de BH, refugiada Maha não tem pátria e sonha com a nacionalidade brasileira

Cinthya Oliveira
cioliveira@hojeemdia.com.br
30/10/2017 às 10:00.
Atualizado em 02/11/2021 às 23:24
 (Flavio Tavares)

(Flavio Tavares)

Maha Mamo tem carteira de habilitação, passaporte  e carteira de trabalho. Em Belo Horizonte, tem liberdade para ir e vir. Mas nem sempre foi assim. Seus pais nasceram na Síria, um país onde pessoas de religiões diferentes são impedidas de se casar. Como a mãe é muçulmana e o pai cristão, eles tiveram de fugir para o Líbano para viver o amor. Os filhos, porém, não puderam ser reconhecidos lá, pois o país só oferece nacionalidade a crianças descendentes de homens libaneses.

Assim como os dois irmãos, Maha cresceu sem documentos. Eram apátridas, situação de cerca de 10 milhões de pessoas ao redor do mundo. Apátrida é toda pessoa que não tem pátria, nacionalidade. Uma questão crescente em um momento em que o mundo vivencia uma crise humanitária sem precedentes. “Hoje em dia, nos campos de refugiados, a cada dez minutos nasce um apátrida, pois essas crianças não são registradas”, afirma Maha, que se tornou porta-voz das pessoas sem nacionalidade junto à Organização das Nações Unidas (ONU).

Morando no Brasil há três anos, a moça de 29 anos tem realizado palestras para contar sua história e revelar um problema sério, mas pouco conhecido. A convite da ONU, já se apresentou em oito países e se prepara para mais uma palestra no mês que vem, na Argentina.

Com um passaporte amarelo, oferecido pelo Brasil a refugiados, consegue viajar para viagens curtas e limitadas, mas ainda espera conquistar a nacionalidade brasileira para ter outros direitos: votar, se casar, passear por outros lugares do mundo. A esperança está na mudança na Lei da Migração, que entra em vigor a partir de novembro. Nela, o país estabelece regras para a naturalização, inclusive para pessoas consideradas apátridas.

Sem documentos

No Líbano, Maha não tinha sequer uma certidão de nascimento. Só pôde estudar porque, após uma peregrinação por escolas de Beirute, sua mãe conseguiu vagas para os filhos em uma escola armênia. “Comecei a sentir o que era ser apátrida aos 6 anos. Corria dentro da escola e era muito boa, mas nunca consegui competir na escola. Depois joguei basquete e 'olheiros' me procuraram para jogar em um clube, mas não consegui”, lembra.

A falta de documento se tornou um problema grave no dia em que Maha teve uma forte crise alérgica em uma festa e precisou de atendimento médico. “Meus amigos me levaram a um hospital, mas no primeiro lugar não me aceitaram. Quando fomos para o segundo local, eu já estava desmaiada e minha amiga apresentou os documentos dela. Fui atendida e comecei a pensar sobre como a coisa é séria”.

Maha não pôde estudar Medicina como gostaria, pois a univerdade não a aceitou. Em todo o Líbano, apenas uma instituição de ensino permitiu seu ingresso como aluna. Lá ela estudou business computer (algo como computação e negócios) e fez mestrado. Mas a falta de documentos continuava a ser um entrave, pois ela corria o risco de ser presa caso fosse parada sem documentos numa blitz.

Caminho até Brasil

Aos 16 anos, Maha passou a enviar cartas e e-mails para funcionários do governo libanês e para embaixadas de vários países, buscando uma solução para o problema de ser apátrida. Houve até uma negociação de dois anos com o governo mexicano, mas o Brasil foi o único país que realmente abriu os braços para os jovens da família Mamo.

Mas a embaixada brasileira deixou claro: entregaria passaportes “laissez-passer” (usado em uma única viagem), mas os jovens teriam de se virar ao chegar à América do Sul. “A gente conhecia o Cristo, sabia de Carnaval e futebol. Mas não tínhamos conhecimento sobre o outro lado do mundo. A gente achava que se falava espanhol no Brasil”, conta.

Fazendo uma busca pelo Facebook, Maha descobriu que uma amiga havia vindo ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, promovida pela Igreja Católica em 2013. A mesma família que recebeu a amiga em 2013 abriu os braços para os irmãos Mamo. A irmã mais velha de Maha veio primeiro. Depois, em setembro de 2014, chegaram Maha e o irmão.

O casal liberou o primeiro andar da casa, localizada no bairro Serrano, na região da Pampulha, para os jovens que vieram do Líbano. Ali, receberam carinho, atenção e aulas de português. Uma moça formada em Relações Internacionais passou a ser o anjo da família estrangeira, ajudando no passo a passo da conquista dos documentos.

Difícil foi para Maha conseguir trabalho, mesmo com Mestrado e sendo fluente em quatro línguas  (árabe, francês, inglês e armênio) no currículo. “Minha irmã foi trabalhar numa padaria e tentei de tudo, até mesmo em um posto de gasolina. Se não fala português, é difícil conseguir emprego. Consegui trabalho entregando jornal e levei meu irmão para trabalhar comigo”.

A esperança de uma vida melhor veio no ano passado, quando Maha conseguiu emprego em uma fazenda de gado em Ibitinga, no interior de São Paulo. Era ela quem fazia as negociações internacionais, especialmente com compradores do Emirados Árabes Unidos.

Reestruturação

Dois meses após a mudança de Maha para Ibitinga, veio o momento mais trágico da vida. Seu irmão, aos 26 anos, foi assassinado por um adolescente durante uma tentativa de assalto no bairro Serrano. Depois disso, algumas coisas mudaram: a irmã mais velha, de 31 anos, buscou um outro apartamento para morar e Maha decidiu voltar para a capital mineira. O retorno aconteceu há um mês.

Estar em Belo Horizonte é algo que agrada muito a Maha. “Tenho uma vida normal. Vou à Savassi, ao (edifício) Maletta e a cachoeiras no fim de semana”, diz a moça, que elegeu a Praça do Papa como o lugar favorito na cidade.

Ela está recebendo seguro-desemprego e espera conquistar um bom trabalho depois que a Lei da Migração entrar em vigor. Isso poderá significar finalmente a realização do sonho de pertencer a uma nação. O trabalho voluntário como palestrante continua. “Alguém precisa falar sobre os apátridas. No Líbano, eu não falava sobre isso, porque a consequência é grande. Mas no Brasil eu tenho passaporte, CNH e passei a falar alto, ser a voz dos apátridas. Meu irmão nasceu e morreu apátrida. Quando disse (ao governo libanês) que gostaria de levar o corpo para o Líbano, me responderam 'por que? Ele não é libanês”.

.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por