Rotina dos entregadores de comida por apps inclui até 12 horas de jornada

Raul Mariano
04/06/2019 às 18:41.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:57
 (Maurício Vieira )

(Maurício Vieira )

De casa, no bairro Califórnia, até a Praça da Savassi, onde trabalha de terça a domingo como entregador de comida por aplicativos, Júnior* gasta 50 minutos pedalando. Mas o trajeto de quase 26 quilômetros, somando ida e volta, ainda é menor do que o deslocamento que o jovem faz pela região Centro-Sul de Belo Horizonte todos os dias.

Assim como ele, centenas de jovens ciclistas – quase todos vindos da periferia ou da Grande BH – transitam pelos principais corredores da cidade trabalhando para as plataformas digitais de forma autônoma. Ou seja, sem vínculos formais de emprego ou direitos trabalhistas estabelecidos.
Júnior cumpre a mesma rotina dos colegas. Faz cerca de dez corridas diárias levando nas costas uma grande mochila térmica, geralmente carregada com hambúrgueres e refrigerantes.Maurício Vieira / N/A

TRÂNSITO - Além do peso da mochila térmica, entregadores de bike têm que lidar com o perigo de circular em meio aos carros e motos. 

A labuta começa de manhã, por volta das 11h, e só termina depois das 23h. O peso da carga, garante o rapaz, não é o maior empecilho. As subidas íngremes de muitas ruas também não. Para ele, o principal desconforto é se arriscar de bicicleta em meio aos carros. “Motorista nenhum respeita a gente”, reclama. 

Apesar de as empresas que oferecem o serviço não divulgarem dados oficiais sobre a quantidade de entregadores em atividade na capital, basta circular próximo às principais lojas de fast-food da cidade para constatar a presença massiva desses trabalhadores. 

Exaustivo

A concentração de ciclistas aumenta no horário de almoço e por volta das 18h, momento de pico dos pedidos. Mas há quem permaneça por tempo indeterminado em frente aos restaurantes e lanchonetes da Savassi, muitas vezes varando a madrugada.  “Já cheguei a ficar até duas da manhã aqui, em uma sexta-feira”, conta Marcelo*, entregador de 21 anos, morador do Aglomerado da Serra. Ele afirma que a jornada é exaustiva e que só faz as entregas porque precisa sobreviver, já que não consegue trabalho formal. 

“A bolsa que a gente usa para trabalhar também temos que comprar. Custa R$ 50, divididos em duas vezes”

Os rendimentos, no entanto, são baixos. A maioria dos ciclistas ouvidos pela reportagem diz que não consegue faturar mais de R$ 200 por semana, mesmo cumprindo uma carga horária que pode ultrapassar 12 horas por dia. “Sem a tarifa dinâmica, a gente ganha R$ 3,50 por entrega aqui na Savassi. Além de ser pouco, tem muita gente disputando o serviço. Então tem dias que a gente fica mais de duas horas esperando um chamado”, explica Douglas*, de 23 anos, morador da Cabana do Pai Tomás. Riva Moreira / N/A

Para aumentar a renda, há quem permaneça até de madrugada próximo às principais lojas de fast-food da cidade

Junto com ele, o primo e vizinho Márcio*, de 31 anos, também relata que o serviço é puxado. Pai de um bebê com uma semana de vida, o entregador conta que nem cogitou folgar para curtir o filho, dada a situação financeira crítica. “A gente entrega comida para os outros mas, para nós, nem água eles dão. Tem que trazer marmita mesmo e comer na hora que der”, conta. “É um sacrifício, mas tem outra opção?”, questiona. 

* Nomes fictícios

Empresas não fornecem água e capacete aos ciclistas

Sem nenhum vínculo formal com as plataformas digitais ou com os restaurantes onde coletam os pedidos, a maioria dos entregadores afirma que gostaria de ter melhores condições de trabalho. O fornecimento de água para consumo próprio e de equipamentos de segurança, como capacete, são itens que, para todos os ciclistas ouvidos pela reportagem, tornaria a rotina menos arriscada e sacrificante.

Para especialistas, a questão se torna problemática diante da inexistência de elementos que configurem vínculos empregatícios. “Seria necessária uma exigência mínima de corridas realizadas ou de dias trabalhados para caracterizar a subordinação, mas isso não acontece”, explica a advogada trabalhista Amanda Azeredo Bonaccorsi.Maurício Vieira 

Na Praça da Savassi, concentração de ciclistas aumenta no horário de almoço e por volta das 18 horas 

Ela garante, no entanto, que o reconhecimento de vínculo não é impossível e depende de como o poder judiciário tende a enxergar a questão. A procuradora da 2ª região do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, Tatiana Leal Bivar Simonetti, afirma que investigações em relação a pelo menos duas plataformas já estão sendo realizadas. “Já conseguimos analisar exaustivamente dois casos, firmamos nossa convicção a favor do reconhecimento da relação de emprego e ajuizamos uma ação”, explica Tatiana. 

Precarização

A procuradora destaca que a relação de autonomia anunciada pelas plataformas digitais não acontece na prática. “Os aplicativos tem controle absoluto do preço, do trajeto e do tempo de entrega. O valor do serviço não é sequer discutido entre as partes, como acontece com ferramentas como Mercado Livre e Airbnb, por exemplo”, explica Tatiana. Maurício Vieira / N/A

DISTÂNCIA - Maioria dos entregadores mora em bairros periféricos de BH ou na região metropolitana

Ela ressalta ainda que a atividade realizada pelos ciclistas se repete nas principais capitais do país e pode ser enquadrada objetivamente como transporte de mercadorias. Por esse motivo, eles deveriam estar amparados por todas as normas que regem o serviço de entregas. “A partir do momento que as empresas se denominam apenas plataformas de tecnologia, elas fogem dessas obrigações e precarizam o trabalho. Estamos diante de uma catástrofe social”, afirma. 

Todas as plataformas de entrega que atuam em BH foram procuradas pela reportagem, mas nenhuma se pronunciou até o fechamento da edição.

Além Disso

Delegado da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (Sbot-MG), Francisco Nogueira afirma que pedalar, como atividade física, é benéfico. Mas enquanto processo laboral, nem sempre é assim. Ele explica que os entregadores de comida por aplicativo precisam equilibrar o peso da carga que transportam em cima da bicicleta e, por isso, fazem movimentos repetitivos continuamente, o que pode trazer prejuízos à saúde. “Se fosse algo esporádico não teria problema, mas ao longo do tempo pode ser arriscado”, diz.

O ortopedista ainda alerta para a possibilidade de lombalgia (dor nas costas), espasmos da musculatura e contraturas, todos problemas desenvolvidos por causa da atividade. “A longo prazo, isso pode gerar um processo crônico de dor permanente”, conclui o médico.

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