Bailarina, coreógrafa e diretora comemora o vigor da improvisação na dança

Bernardo Almeida
03/06/2019 às 08:59.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:55
 (Maurício Vieira)

(Maurício Vieira)

Maria de Lourdes Herrmann mal resiste a dez segundos sem deixar escapar uma de suas marcantes e contagiantes gargalhadas. Nem mesmo o pedido para fazer uma pose séria passou imune dessa reação, durante sua visita à redação do Hoje em Dia. “Faz muito tempo que não vou a uma redação, hoje é tudo por telefone e redes sociais”, diz, observando tudo com uma curiosidade permanente.

Nenhum detalhe passa batido, desde os quadros da sala em que deu a entrevista, dos quadrados formados no vidro até a marca que estampava na própria camisa, que decidiu virar do avesso para não fazer propaganda nas fotos. “O espaço importa”, explica. Nem mesmo a frase escrita na parede escapa ao seu olhar atento e crítico.

“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”, lê em voz alta antes de contestar. “Engraçado, não acho que isso esteja certo, porque adaptação é uma forma de inteligência”.

​“Minhas irmãs gêmeas tinham os joelhos em forma de arco, o médico recomendou que elas entrassem para o balé. E eu fiquei com aquele ciúme de irmã e quis entrar para a dança também. Nós entramos, minhas irmãs ficaram um tempo e saíram, mas eu nunca mais saí”

​É justamente essa percepção do seu redor que nutre a arte da improvisação da diretora, coreógrafa e intérprete Dudude Herrmann, o que ela revela durante conversa em meio à série de performances em comemoração aos 50 anos de sua trajetória com a dança, desde os 10 anos de idade, quando entrou para a escola TransForma, a Mostra Dudude 50. 

Aos 60 anos de idade, Dudude termina no próximo final de semana a série de três apresentações de espetáculos solo de dança contemporânea, com a remontagem de “Maria de Lourdes em Tríade”, no Galpão Cine Horto, completando com as apresentações de “Sublime Travessia”e“A Projetista”, no mês passado. A mostra consiste ainda do lançamento do livro “Ela sentou na cadeira”, em que reúne escritos que vão desde reflexões sobre o processo de improvisação até poemas. Atualmente, se divide entre aulas em escolas particulares de dança em BH e seu ateliê, que fica em sua casa, na região de Casa Branca, em Brumadinho.

Ela lembra como começou sua trajetória no Grupo Transforma, onde se formou entre os anos de 1969 e 1978, cinco anos de curso básico e outros três de curso profissional com Marilene Martins - a quem carinhosamente se refere por Nena - e a quem atribui muitos méritos pela rica linguagem da dança no Brasil. Dudude fala sobre como enxerga sua arte, o cenário da dança e da cultura em Belo Horizonte. 

Como você entrou para o mundo da dança?
Foi bem ao acaso. Minha mãe era cantora lírica, trabalhava muito com o meio artístico e conhecia as irmãs de Marilene Martins, Maria Amália e Maria Amélia. E a Marilene estava abrindo uma escola de dança na casa dela. A gente morava na Ceará e a Marilene na Piauí, só um estado de diferença. (risos). Minhas irmãs gêmeas tinham os joelhos em forma de arco, o médico recomendou que elas entrassem para o balé. E eu fiquei com aquele ciúme de irmã e quis entrar para a dança também. Nós entramos, minhas irmãs ficaram um tempo e saíram, mas eu nunca mais saí. Eu fiz parte desse primeiro conjunto de alunos da Nena, que fizemos a base do grupo Transforma, que causou muito, tanto em Belo Horizonte quanto no Brasil, por assim dizer, mesmo quase não saindo daqui da cidade. Mas as pessoas que passaram pelo Transforma deram uma pulverizada, alterando a dança no Brasil.

A Nena sempre foi uma pessoa muito curiosa e na vanguarda, que queria mover a cena de Belo Horizonte e construir uma escola de dança brasileira, então, para isso, ela convidava pessoas de fora para vir para cá, como Klaus e Angel Vianna, Carmem Paternostro, Denilton Gomes e a Graciela Figueroa, uruguaia, que depois foi para o Rio e modificou o cenário da dança lá, com o grupo Coringa. O Grupo Corpo nasceu do Transforma, então, o Transforma deu uma sacudida nesse mundo da dança. A Nena pode ficar orgulhosa do tanto que ela possibilitou.

Por que você enveredou para a improvisação?
Eu vi que eu tinha uma certa queda para isso. Eu gosto de fazer coreografias, de ensaiar um espetáculo, uma estrutura previsível, mas, como artista, eu preciso aproveitar o presente, e essa coisa de delongar projetos, que, muitas vezes, têm uma barriga muito maior que a gestação de nove meses. Eu vim de uma escola livre, e essa origem da sua formação, na maioria das vezes, te marca, te registra, por mais que você queira fugir. Eu comecei a dançar muito cedo, a dar aulas muito cedo, a dirigir trabalhos e coreografar improvisando, porque naquela época dos anos 70, funcionava na base do “faz alguma coisa aí”. Em 1996, eu acho, tive um encontro muito marcante com a (coreógrafa holandesa) Katie Duck, uma das maiores improvisadoras do mundo. Ela sistematizou os modos de ensinar dela e, vendo o trabalho dela, eu pensei, “gente, eu faço isso também”. Foi quase como se ela me desse uma autoridade, de que isso fosse normal. Desde aquela época, eu assumi completamente a improvisação, mergulhei nisso, comecei a pesquisar e desde então eu continuo atrás disso. A improvisação é uma linguagem da ação do presente, tudo é importante e tudo fala.

Essa sala, com a mesa, as cadeiras e quadro, parece neutra, mas escapa alguma coisa. Então, o improvisador é um bom farejador. Ele usa das coisas. A improvisação é uma linguagem econômica, porque o espaço já está pronto. A arte escancara aquilo que já está. Então a improvisação também pode ser chamada de composição em tempo real. De acordo com Lisa Nelson, dos anos 60, o termo improvisação é um gigante, ali cabe muita coisa, inclusive muitos equívocos. Mas como explicar isso para um público que está longe da sensibilidade? Por isso que as pessoas precisam frequentar teatros. Porque o teatro não é doutrinário, ele é libertário. Eu encontro até hoje gente que nunca pisou num teatro, ou que diz ter ido ao cinema uma vez, ou mesmo nunca. Eu vou ao teatro não para entender, eu vou ao teatro para sentir. Você vai lá se trabalhar, no imprevisível que possa te tocar. 

“Improvisação é uma linguagem econômica porque o espaço já está pronto. A arte escancara aquilo que já está. Então, a improvisação também pode ser chamada composição em tempo real”​

Como você vê hoje o cenário da dança em Belo Horizonte?
Belo Horizonte se tornou uma referência de produção em dança no Brasil, nos anos 80 e 90, e hoje, quando eu viajo, as pessoas elogiam a quantidade de produção que temos aqui. Mas eu gostaria que tivesse mais ainda, porque eu vejo meus colegas de dança muito apertados e pensando sempre em se adequar para menos, não para mais. A gente já vem há um tempo sempre se adequando. Em Belo Horizonte ainda há um certo tom tradicional, careta. No livro mesmo eu falo dessa sensação outsider (termo em inglês que descreve alguém que não se enquadra em um grupo).

Prefiro manter meu horizonte expandido do que me recolher num canto, só. Por isso cheguei até aqui. Um dos fomentos de um artista é curiosidade, interesse pelo outro, desapego, adaptabilidade. Eu não fico muito preocupada com como vai a dança em Belo Horizonte, eu fico preocupada com a produção do sensível. Uma certa faixa de artistas foi contaminada pelo Festival de Inverno da UFMG, porque ali a gente tinha todas as linguagens, transitava por todos os mundos, da literatura, da música, da dança, das artes visuais, do teatro, esse povo que está mais na minha faixa etária e dando aulas, então, também vão contaminando outros.

Qual a diferença entre a improvisação no teatro e na dança?
A dança é uma matéria abstrata. A história que ela conta é a história que cada um da audiência vai associar, não é galgada no humano, é um devaneio, a gente não tem que explicar nada. O humano é atravessado. A lógica é fragmentada, a nossa perseguição é o momento já, desvelar imagens que ali estão. A fala das coisas, sabendo que todos nós somos seres associativos. Cada um dá seu sentido. Essa é grande liberdade. Um espetáculo de improvisação não se repete. O improvisador está buscando um voo, a intensidade do tempo agora.

Você chega aos 60 anos dançando e praticando, se eu comparar com a vida útil do corpo de um atleta, estou fazendo uma comparação equivocada?
Totalmente equivocada. O atleta quer ganhar, competir, não vai durar até os 60 anos, está sempre no sobre-esforço do vencer. Na arte você se reinventa cotidianamente. Tive uma idade em que eu pulava muito, dançava, ficava quase o tempo inteiro só suspensa, porque tinha que gastar um físico referente à própria idade. Depois, você vai ficando mais velha. Para quê eu vou pular? Não preciso mais. Você vai se adaptando. E é claro que o conhecimento está dentro das suas células, foi adquirido. Somado a uma inteligência nata, você vai ter um corpo adequado para várias propostas. Eu vou escutar meu corpo primeiro. Isso chega na questão do virtuosismo, algo com que nunca me preocupei, porque minha origem me desviou disso, dessa ideia da bailarina f…, que gira e tal, que tem muito a ver com a origem da dança clássica, e está atrelada ao modo de viver. É claro que eu tenho uma habilidade física que eu vou cuidando dela até o momento em que isso me alimenta. Não é que nasci bailarina, vivi bailarina e vou morrer bailarina. Nasci pessoa, vivi pessoa, vou morrer pessoa.

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