Historiador debate em BH o papel das forças armadas nos governos brasileiros

Cinthya Oliveira
26/08/2019 às 08:17.
Atualizado em 05/09/2021 às 20:09
 (Daniel Bianchini/Divulgação)

(Daniel Bianchini/Divulgação)

Em 2005, o historiador José Murilo de Carvalho publicou “Forças Armadas e política no Brasil”, analisando a relação entre os militares e os caminhos políticos do país desde o Império. A obra encontrava-se esgotada há anos, mas, no momento em que generais comandam vários ministérios e cargos de confiança, inclusive a vice-presidência, volta à tona. 

Na quinta-feira, o escritor imortal da Academia Brasileira de Letras participa do projeto Sempre Um Papo e vai conversar com o público sobre o livro, que acaba de ser relançado pela editora Todavia acrescido de três textos – um deles apresenta uma análise sobre a presença do militares no governo de Jair Bolsonaro (PSL). Nesta entrevista, o historiador mineiro aborda o título e outras questões.

As Forças Armadas têm forte presença no atual governo, à frente de vários ministérios. Quais as diferenças e semelhanças entre os generais que estão no governo Bolsonaro e aqueles que comandaram o Brasil durante as duas décadas de ditadura?
A presença é sobretudo de oficiais do Exército, a maioria da reserva. Muitos dos militares atualmente no governo formaram-se nas escolas militares ainda durante a ditadura. Mas de 1985 até hoje houve muitas mudanças no país e nas próprias Forças Armadas. Embora muitos militares ainda justifiquem a ditadura, certamente não pensam em repetir a dose. 

No texto “Uma república tutelada”, o senhor afirma que chega a ser chocante constatar que a atribuição de papel político às Forças Armadas é prevista em cinco de nossas sete Constituições feitas após a Independência, inclusive na de 1988 (estabelecendo aos militares o papel de garantia da lei e da ordem). Isso é diferente em outros países?
É diferente de todas as democracias maduras. Nem Argentina e Chile, países responsáveis pelas ditaduras mais violentas da América do Sul, prevêem esse papel em sua legislação. A regra geral é atribuir às FA a defesa externa dos países. A defesa interna, isto é, a manutenção da lei e da ordem, é, nos países democráticos, tarefa de forças policiais, guardas nacionais, gendarmarias etc., podendo o Chefe de Estado recorrer às FA para exercer essas tarefas apenas em situações excepcionais. Não há nesses países dispositivo legal que atribua às FA o papel político de “garantir os poderes constitucionais”, como está na Constituição brasileira de 1988. É a isso que chamei de tutela, de poder moderador, uma reminiscência do Império. 

Durante os mais de 12 anos de governo do PT, pareceu haver uma boa relação entre Palácio do Planalto e Forças Armadas, com investimentos em segurança que eram muitas vezes contestados pelos políticos de esquerda. Onde o PT errou ao estabelecer essa relação, permitindo que um sentimento antipetismo e antiesquerdismo tomasse conta de muitos meios militares?
Lula retomou o sonho de uma grande potência criado pela ditadura, um sonho, aliás, presente no país desde a Independência, quando se falava na construção de um grande império. Mas o namoro parava por aí. Nunca houve aproximação política ou ideológica e a questão da anistia e do reconhecimento dos crimes da ditadura permaneceu um ponto polêmico, sobretudo no governo Dilma. Acrescentem-se a isso as denúncias de corrupção embutidas no Mensalão e na Lava Jato, fator de desconforto para os militares. 

Por que o presidente Jair Bolsonaro conseguiu tanto apoio entre os militares, mesmo sendo um homem que foi reformado pelo Exército aos 33 anos? Não seria mais natural uma identificação dos militares com alguém que tivesse chegado a uma alta patente?
Bolsonaro foi um mau militar, como disse o próprio general Geisel. Foi praticamente forçado a ir para a reserva, como mostra o livro de Luiz M. Carvalho, recém-publicado. Bolsonaro foi eleito não por ser militar, mas por mobilizar com apelos populistas um forte sentimento de reação ao PT e a medidas legais inspiradas na ampliação do conceito de direitos humanos, mas ofensivas a parte significativa da população, como as referentes à família, ao aborto, à política de gênero, temas clássicos do conservadorismo social e cultural. Nenhum general seria capaz de operar essa mobilização. Alguns deles, fazendo aposta arriscada, aceitaram fazer parte do governo. Mas no governo eles não representam suas corporações, embora um fracasso da administração possa respingar sobre elas. 

Em 2015, o sr. escreveu um texto intitulado “Luz Amarela”, incluído nesta nova edição de “Forças Armadas e Política no Brasil”, em que se mostra apreensivo com o posicionamento do general Hamilton Mourão sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Afirmou que isso “poderia ser sintoma do surgimento do único perigo real para nossas instituições, o envolvimento político das Forças Armadas”. Como o senhor enxerga o papel do general Mourão no contexto político do governo Bolsonaro?
Na época, o general Mourão, ainda na ativa, fez declarações políticas proibidas por lei e foi punido. Ele repetiu a dose no governo Temer e foi tratado com leniência pelo comandante do Exército. Irônica e surpreendentemente, ele se revelou uma voz de bom senso dentro de um governo que não cultiva essa virtude. 

Num momento em que há acirramento do discurso conservador e temos muitos membros das Forças Armadas em diversas esferas de governo, existe algum risco de vivenciarmos uma nova ditadura militar?
É risco remoto. Os militares no governo não são representantes das Forças Armadas. E são quase todos do Exército. Marinha e Aeronáutica são forças mais profissionalizadas. Nova intervenção pode haver apenas em caso de perda total de controle da ordem pública e, mesmo assim, dificilmente com as características da ditadura de 1964-85. 

Mesmo sendo um país que celebra eleições periodicamente desde 1989, podemos considerar o Brasil como um país democrático? Nossas instituições são fortes o suficiente para considerarmos nossa democracia sólida?
Trata-se de uma democracia frágil. Os ingredientes de uma democracia estão presentes: Constituição, divisão de poderes, sistema representativo, liberdade de organização e de opinião. Mas nossa história, desde 1930, é de instabilidade política. Só uma análise histórico-sociológica poderá tentar explicar o que nos falta para consolidar o sistema. 

O historiador vai conversar com o público nesta quinta-feira, às 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1537). Entrada franca

Dificilmente se encontra um país com tantos momentos de rupturas políticas e golpes desde a Proclamação da República. Em 30 anos de redemocratização, já tivemos dois presidentes “impeachmados”. Como podemos fazer a população brasileira se compreender dentro de um processo democrático quando a história do país nos mostra que tudo pode mudar, independentemente da vontade do povo?
Desde 1930, quase 90 anos atrás, dos presidentes eleitos pelo voto popular só Dutra, JK, Fernando Henrique e Lula (Dilma no primeiro mandato) terminaram o mandato. Os outros foram derrubados por golpes (ilegais) ou impeachments (legais). Uma possibilidade de explicação que me tem ocorrido é o fato de que entre nós o povo entrou muito tarde e muito depressa na vida política. Entrou após 1930, 128 anos depois da Independência. Nossa sociedade profundamente desigual e oligarquizada não aguentou o impacto de demandas reformistas surgidas após a redemocratização de 1945 e entrou em colapso em 1964. Depois de 1985, houve tentativas de inclusão social mas por medidas paternalistas que não exigiam redistribuição de renda. Agora foi a economia que não aguentou. Ou conseguimos inclusão social pelo emprego, via crescimento econômico e medidas redistributivas, ou não haverá recursos para sustentar os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. E a democracia tropeçará de novo. 

Quais são suas perspectivas para os próximos processos eleitorais? A tendência é os militares ganharem mais terreno, conquistarem mais espaço nos poderes Executivo e Legislativo?
Não me parece. Depois de 1930, só um militar chegou ao poder pelo voto popular (Dutra, com ajuda de Vargas). Na primeira República, só um também (Hermes da Fonseca). Presença militar relevante no Legislativo só se verificou na primeira constituinte republicana. Atividade político-partidária não combina com estilo militar. Ou entram pela força (golpes), ou como técnicos e administradores (hoje), ou, idealmente, não entram.

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