Ao vivo, da janela: apresentações artísticas estreitam relações entre vizinhos na pandemia

Paulo Henrique Silva
phsilva@hojeemdia.com.br
14/08/2020 às 18:31.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:17
 (Maurício Vieira)

(Maurício Vieira)

A inspiração veio da Itália. Quando a pandemia de coronavírus atingiu o país, levando o sistema de saúde ao colapso, os italianos foram para as janelas para cantar e dançar em uma demonstração de resistência - não por acaso, um hit destes corais improvisados foi “Bella Cio”, hino que virou sinônimo de liberdade e luta durante a Segunda Guerra Mundial. 

No Brasil, as lives de artistas ganharam destaque neste momento de isolamento social. Mas outros dispensaram a câmera do celular para se satisfazerem apenas com a plateia de vizinhos, levando pessoas de um mesmo prédio, por exemplo, que não podem interagir como antes, a se conectarem pela força e pela beleza de uma música ou coreografia.

“As nossas relações se estreitaram”, observa Marlon Humphreys, trompetista da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais que, durante dois meses, fez de seu instrumento um transmissor de esperança e de afetuosidade da janela de seu apartamento, no bairro Gutierrez. “No grupo de WhatsApp, em que falávamos só de coisas do condomínio, passamos a nos conhecer melhor e a nos falar”, registra. 

Confira as histórias de alguns desses artistas:

SOPHIA HERINGER

A bailarina Sophia Heringer ganhou um prêmio internacional sem sair da sala de casa, após enviar um vídeo com uma coreografia inventada por ela para o concurso Dance-Off, da Royal Academy of Dance, sediada em Londres. Sem poder ter aulas presenciais de balé, devido à pandemia, Sophia contou com o apoio da família para recriar um estúdio dentro do apartamento.

Agora ela quer compartilhar com os vizinhos este momento de reconhecimento. Moradora do mesmo prédio da dupla de instrumentistas João Gabriel Carvalho e Carolina Rodrigues Costa, a bailarina de 12 anos também resolveu usar a área comum do condomínio para mostrar seus dons e levar um pouco de arte para quem está em isolamento social.

O local é o palco escolhido para apresentar a sua coreografia na abertura on-line do Festival de Arte e Criatividade (FAC), de Campina Grande, na Paraíba. A transmissão acontecerá às 17h deste domingo (16). Carvalho e Carolina estarão presentes, responsáveis por executar a trilha sonora ao vivo, com “A Marcha Turca”, de Mozart.

“Estamos unindo o útil ao agradável”, assinala Juliana Heringer, a mãe coruja de Sophia. “De alguma forma estaremos alegrando as pessoas, que poderão extravasar num momento tão delicado como agora”, destaca.

DUO VIOLAOCELLO

O violonista João Gabriel Carvalho e a violoncelista Carolina Rodrigues Costa já tinham se apresentado em varandas para idosos e aniversariantes. Com a pandemia, este cenário mais intimista ganhou força. O local escolhido foi a área da piscina do prédio onde Carvalho mora, no bairro Funcionários. “A gente estava acostumado a treinar música para um próximo concerto. Com a pandemia, ficou meio frustrante, pois treinávamos sem poder tocar. Então resolvemos repetir aqui este movimento que começou na Itália”, observa o violonista de 25 anos, aluno do curso de música da UFMG.

A primeira preocupação foi não soar invasivo às pessoas. “Como todo mundo iria de uma forma ou de outra ouvir da casa delas, não queríamos chegar impondo coisas. Por isso buscamos um repertório que refletisse aquele perfil de público e que não o incomodasse”, salienta Carvalho. A escolha recaiu sobre canções mais universais, especialmente as de lavra mineira, conhecidas na voz de Milton Nascimento, Lô Borges e Vander Lee. E tudo instrumental. Nada de soltar a voz. “Queríamos valorizar o aspecto instrumental, já que muitas pessoas não tinham contato com um violoncelo”, explica.

Deu certo. Todos os domingos, por volta de 10h30, várias pessoas já se dirigem  às janelas à espera da dupla. “Eles acabavam pedindo música. Um senhorzinho queria ‘Travessia’, do Milton Nascimento, e, quando tocamos, ficou muito emocionado”, recorda. No instagram da dupla (@duoviolaocello), os pedidos se avolumaram. Profissionalmente, foi bom também. “Já acertamos para setembro apresentação num casamento”, revela. Com o retorno das aulas na UFMG, porém, o casal já avisou que, neste domingo, o concerto terá sabor de despedida. Certamente não faltarão os gritos de “bis” para um futuro próximo.

SEU PIMENTA

Uma das últimas apresentações do grupo Seu Pimenta aconteceu na área comum de um condomínio de 500 apartamentos, no bairro Buritis, em abril. “Tinham pessoas de todas idades nas sacadas, de casais dançando a vovôs com crianças de colo. Foi muito gratificante poder levar alegria às pessoas num momento tão difícil. Sinto que demos a nossa contribuição”, recorda o vocalista Breno Pimenta. 

A intenção da banda era fazer vários shows neste formato, gratuitamente, como uma maneira de levar descontração às pessoas em isolamento social. Mas com a proibição da realização de festas em condomínios, o Seu Pimenta preferiu não arriscar e parou com os shows, que exibiam um repertório baseado em pop rock nacional e internacional, principalmente músicas dos anos 80. 

A ideia de usar a música como um instrumento de ação social durante a pandemia continuou em outras frentes. Junto ao movimento Corrente do Bem, a banda participou do projeto “Canção e Pão”, no posto da Polícia Rodoviária Federal em Contagem. Enquanto eram entregues marmitex aos motoristas de caminhão, o Seu Pimenta dedicava uma música sertaneja a cada viajante. 

“Acontecia durante o horário do almoço e a polícia rodoviária ajudava a formar uma fila de caminhões. Íamos de veículo em veiculo, entregando um alento em forma de música para os caminhoneiros, que não puderam parar durante a pandemia”, destaca Breno.Arquivo Pessoal/Divulgação

Trompetista Marlon Humphreys criou uma conexão especial com os vizinhos ao se apresentar durante o pôr-do Sol diariamente

MARLON HUMPHREYS

Durante as suas apresentações diárias, sempre durante o pôr-do-Sol, o trompetista Marlon Humphreys sentia que estava cumprindo com uma das vocações da música, ao criar uma conexão especial com pessoas que conhecia apenas por um “Bom dia!” trocado no momento de dividir o elevador do condomínio onde mora, no bairro Gutierrez.

“Sem querer, escolhia músicas que tocavam as pessoas por terem marcado algum momento da vida delas. Geralmente, no meu Instagram, lia depoimentos emocionados de quem ouvira a trilha sonora do casamento ou do aniversário. Neste momento de angústia, a música ganha um efeito que jamais poderia imaginar”, analisa Humphreys. O repertório era eclético. A única regra para o trompetista era de que precisava gostar das músicas para poder tirar o melhor delas com o seu instrumento.

“Ia do erudito e do barroco para a coisa mais popular, como o rock. Só era preciso manter a intensidade da obra”, registra o instrumentista, que é trompetista solo da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Com o tempo, porém, Humphreys passou a ganhar outros concorrentes: o barulho dos carros e das motos que passavam em sua rua, antes quase deserta devido ao isolamento social praticado com rigor no início da pandemia. “As coisas estavam voltando ao normal. Carros passavam na rua, mas eram poucos. Como minha rua é íngreme, os carros têm que forçar um pouco e você não escutava outra coisa”.

O trompetista não teve outra saída a não ser interromper a iniciativa, inspirada na cantoria dos italianos nas janelas no momento mais agudo da pandemia naquele país. Mas, ao que parece, o concerto já tem data para retornar. A pedido dos vizinhos, ele deve fazer uma apresentação neste domingo.

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