As mãos trêmulas, os olhos marejados, os machucados pelo corpo e a baixa autoestima de Jorge*, de 45 anos, escancaram o vício por mais de uma década em crack, alimentado por frustrações e conflitos familiares. Nos últimos anos, a dependência só piorou. Em 2018, no entanto, ele decidiu dar um basta e foi atrás de ajuda.
Assim como Jorge, milhares de usuários de drogas em Belo Horizonte estão em busca de socorro. Na rede pública de saúde da capital, a quantidade de assistidos, só de janeiro a outubro, já supera em 29% o número referente aos 12 meses de 2017. Em 2018, mais de 14 mil pessoas foram atendidas.
Gerente do Centro de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas (Cersam AD) do bairro São Paulo, Maria da Conceição dos Santos afirma que muitos estão considerando a necessidade de abandonar o vício. No caso de Jorge, que vai diariamente à unidade na região Nordeste da metrópole, o desejo é reduzir os danos causados à saúde e retomar o ofício de pintor.
A dependência vai muito além da perda de laços afetivos e, sem tratamento adequado, pode até matar, afirma o coordenador do Centro de Referência em Drogas da UFMG, Frederico Garcia. Segundo ele, pode ocorrer o fechamento de artérias de vários órgãos e a perda de funções cognitivas e motoras
Condição agravada
O trabalho ficou prejudicado, assim como o convívio familiar. Nesse período como dependente, o homem viu um dos filhos e a ex-mulher morrerem em um incêndio, em 2011. O episódio só o fez afundar ainda mais no submundo das drogas.
Os outros dois filhos de Jorge, de 16 e 23 anos, se envolveram com o crime e, hoje presos, também são usuários. “Fumava escondido deles, mas acho que sabiam. Talvez eu tenha sido uma influência ruim”, diz.
“Quero cuidar da minha mãe, que tem 78 anos e está bem debilitada, e ver meus quatro filhos mais vezes. Sinto muita saudade deles” (Anderson*, de 40 anos, usuário de cocaína e maconha, ele quer retomar a convivência com os filhos, que moram no Espírito Santo)
Obstáculos
A batalha pela desintoxicação, entretanto, não é fácil. Nos 12 anos de uso de entorpecentes, tentou se tratar por três vezes, sem sucesso. Só durante dois meses não fumou crack. A recaída foi inevitável.
Esse, inclusive, é o maior obstáculo durante o tratamento. De acordo com Mariana Vidigal, especialista em estudos psicanalíticos, voltar a utilizar substâncias químicas no processo pode ocorrer em momentos de frustrações pessoais ou profissionais. “A droga tem uma função para cada caso. Para algumas pessoas será um anestésico, uma forma de fugir da realidade”, explica a professora do Departamento de Psicologia da UFMG.
A docente destaca ser necessário descobrir o que levou o paciente ao consumo. Mas isso é apenas “a ponta de um iceberg”. “É preciso diagnosticar tudo o que vem abaixo”. Mariana Vidigal diz que para cada paciente há diagnóstico e tratamento específicos, e a internação deve ser a última opção de assistência.
Sem fórmula mágica
Além disso, a especialista frisa não haver fórmula mágica para a cura do dependente químico. “O que existe é uma série de estratégias que pode ser usada para que a pessoa retome a autonomia sobre o vício e prossiga com a vida da maneira como achar conveniente”.
É preciso, ainda, ficar atento a falsas promessas. “Hoje, existem muitas comunidades terapêuticas que visam somente o lucro”, alerta a professora da UFMG.
NOVA CHANCE - Assistidos no Cersam recuperam autoestima em oficinas de artesanato
Multidisciplinar
Cersam AD funciona todos os dias, de 7h às 19h, com atendimento noturno em casos de urgência; endereços podem ser consultados no site prefeitura.pbh.gov.br/saude
Belo Horizonte oferece quatro unidades do Cersam AD para o tratamento de dependentes químicos. Além do bairro São Paulo, o atendimento é feito nas regionais Pampulha, Barreiro e Centro-Sul. Lá, os pacientes são assistidos por enfermeiros, psiquiatras, psicólogos, terapeutas e clínicos.
“Ofertamos cuidado, essa é a nossa especialidade. Toda pessoa que chega aqui, com a família ou de maneira espontânea, é acolhida”, diz Maria da Conceição dos Santos, gerente do Cersam AD do bairro São Paulo.
Além do corpo clínico interdisciplinar, os usuários têm acesso a oficinas de artesanato. De acordo com a instituição, a atividade eleva a autoestima e mostra que eles podem ter uma nova colocação no mercado de trabalho.
Passeios a cinemas e teatros também fazem parte do tratamento. “Existem casos de quem ficou 20 anos em situação de rua, dormindo em porta de museu, mas nunca entrou nesse espaço porque não sabia que tinha esse direito”, observa Matuzalem Araújo, de 26 anos, que trabalha como redutor de danos no Cersam AD.
As reuniões em grupo, com a participação de pessoas que já conseguiram controlar o vício, integram a assistência. O contato, de acordo com especialistas, ajuda no tratamento.
O resultado, na avaliação de Maria da Conceição, é satisfatório. “Eles enxergam o Cersam como uma porta aberta, onde serão bem tratados e respeitados dentro de cada limitação”, explicou a gerente.
Presente
Que o diga Fernanda*, de 27 anos. Usuária de cocaína desde a adolescência, ela considera os funcionários da unidade como “amigos que a vida a presenteou”. “Não posso parar de vir aqui porque, do contrário, eu afundo”, lamentou.
Perder a batalha para as drogas é uma das grandes preocupações da mulher. Por conta do uso de entorpecentes, aos 18 anos teve um filho, ainda bebê, retirado dela pelo Conselho Tutelar.
Agora, com uma criança de quase dois meses nos braços, Fernanda teme pela perda novamente. “Quero me cuidar para criar meu filho, voltar a trabalhar fazendo faxina e qualquer outro bico que surgir”, disse a mulher.
*Nomes fictícios
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