Missão do Drenurbs de recuperar rios é desvirtuada em prol da canalização

Aline Louise - Hoje em Dia (*)
29/07/2015 às 06:25.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:07
 (Ricardo Bastos)

(Ricardo Bastos)

Uma tarde, em plenas férias de julho, na avenida Várzea da Palma, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte. Ali, apenas o vai e vem de carros na ampla via duplicada que encobre o córrego do Índio, o principal da região.

Margeando a avenida, uma grande bacia de detenção para controle de cheias. Nessa área, é possível ver a água do córrego canalizado. Corre suja, cheia de lixo jogado pela própria comunidade, numa evidente prova de falta de identidade com o local. No descampado da bacia, vazia por causa da seca, uma criança caminha sozinha.

Na mesma tarde, não muito longe dali, no bairro Aarão Reis, região Norte, outro córrego passa a céu aberto, mas limpo, com nascentes preservadas e lagoa. O curso d’água é contornado pelo Parque Nossa Senhora da Piedade, florido e bem cuidado. Como é férias, o espaço é tomado por crianças, famílias que têm o lugar como área de lazer e encontro.

Apesar das duas paisagens distintas, ambas foram concebidas com base no mesmo Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte (Drenurbs), considerado, um dia, pioneiro pela preocupação com a reforma paisagística e ambiental. A diferença, dizem especialistas, é que o programa mudou radicalmente, e para pior.

No Parque Nossa Senhora da Piedade, concluído em 2008, uma das primeiras intervenções do Drenurbs, concluiu-se a proposta para a qual foi criado, em 2001: promover a despolu-ição dos cursos d’água, a redução dos riscos de inundação e a integração dos rios e córregos ao cenário urbano, respeitando o traçado original.

No caso da avenida Várzea da Palma, cujo projeto ainda está em andamento, o que se vê é a reprodução de um modelo que o Drenurbs chegou para desconstruir: o de jogar a sujeira para debaixo de avenidas sanitárias.

Para o especialista em recursos hídricos Rodrigo Lemos, as últimas obras do programa não poderiam sequer usar tal chancela. “O Drenurbs é um programa de renome. A prefeitura se apropriar desse título para justificar intervenções, inclusive questionáveis, é antiético”.

O médico, escritor, ecologista, idealizador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa, tem a mesma opinião. “Na avenida Várzea da Palma, era para ter sido feito um grande balneário, mas decidiram por canalizar”, lamenta. Radicalmente contra a esse tipo de obra, Heringer diz que o Drenurbs virou um projeto de vias urbanas, priorizando ruas e avenidas. “É um atraso. Está na contramão do mundo. Vários países estão revitalizando os rios. O exemplo mais radical é de Seul, na Coreia do Sul, onde retiraram uma das avenidas mais movimentadas para revelar o rio”.

Resposta

Por meio de nota, a Sudecap informou que o Drenurbs tem como proposta “reverter a degradação em que se encontram os córregos não canalizados da cidade”. E reforça que “há uma concepção de cunho ambiental e não é, portanto, um conjunto de intervenções meramente sanitárias ou somente de drenagem”.

Quanto às obras do córrego Várzea da Palma, esclareceu que trata-se de uma intervenção “muito complexa”, que foi dividida em etapas.

Entre 2011 e 2013, informou a Sudecap, foram concluídos o tratamento de fundo de vale dos córregos das avenidas Várzea da Palma e Central, a canalização, a implantação de bacias de detenção e sistema viário, a remoção e reassentamento de famílias sujeitas a inundação, a urbanização da Vila Apolônia, a construção de unidades habitacionais, dentre outras medidas. O investimento foi de R$ 68 milhões. Atualmente, a Sudecap executa a etapa final da obra, prevista para acabar em 2016.

No lugar de parque, ‘piscinão’ com córrego de água poluída

“Perto de muita água, tudo é mais feliz”, dizia Guimarães Rosa. Essa máxima passou a ser percebida por muitos especialistas e gestores, que têm apostado na revitalização e integração dos rios à paisagem urbana. Mais do que tornar a cidade bonita e agradável, esse novo modelo também pode ser mais eficiente no controle de enchentes.

Muitas vezes, reforçam os especialistas, a canalização pode produzir o efeito contrário. Isso porque a retificação dos cursos d’água faz com que ela corra de forma mais agressiva, provocando fortes cheias. Serpenteando em seu traçado natural, a água encontra obstáculos e perde força.

Futuro

Entretanto, esse novo paradigma preconiza também uma ação mais integrada. “Não é apenas não canalizar. É uma forma diferente de tratar e resolver”, diz o especialista em recursos hídricos Rodrigo Lemos.

Ele reforça que, em vez de trabalhar só o efeito, essa lógica pretende atuar em toda a bacia, aumentando a área de permeabilidade, diminuindo a velocidade de escoamento, criando áreas de amortecimento da água.

Apolo Heringer, do Manuelzão, diz ser preciso reduzir o efeito impermeabilizante do concreto para acabar com as enchentes. “A prefeitura poderia dar 10% de isenção no IPTU para quem tirasse o cimento do quintal”, sugere.

Crise Hídrica

Lemos também destaca que se os córregos em Belo Horizonte estivessem em melhores condições, o rio das Velhas, que recebe as águas da cidade, sentiria os efeitos positivos e estaria em melhores condições.

“Se a gente tivesse um manejo integrado de águas urbanas e uma gestão responsável dos recursos hídricos, conseguiríamos lidar com mais eficiência com a escassez de água”.

Frustração. Esse é o sentimento da comunidade abrangida pela bacia do córrego São Francisco, que também recebe obras do Drenurbs e compreende os bairros Indaiá, Liberdade, Jaraguá e Aeroporto.

A intervenção deveria ter sido concluída em abril, mas se estende em um rumo bem distante do esperado pelos moradores.

Na avenida Assis das Chagas, é construída uma bacia de detenção cujo objetivo é evitar enchentes no aeroporto. Porém, a comunidade esperava a concepção de um parque.

“Esse trabalho não tem nada a ver com a dimensão inicial do Drenurbs. Uma obra de drenagem assumiu caráter prioritário, passando por cima da decisão coletiva e pública de se construir o parque, que era uma conquista da comunidade em votação no Orçamento Participativo”, diz Rodrigo Lemos, especialista em recursos hídricos.

Ele reforça que a obra é questionável. “Vai ajudar, mas vai resolver? Tenho dúvida”.

A líder comunitária Nirma Damas, que participou das negociações e discussões do projeto, diz que a população se sente ludibriada. “Na verdade, as coisas não estão acontecendo do jeito que foram programadas”.

Outro lado

A prefeitura alega que a execução ocorre de acordo com o projeto aprovado e que em nenhum momento foi estabelecido pela Sudecap que a obra da bacia de detenção do córrego São Francisco iria ser nos moldes da bacia Nossa Senhora da Piedade.

O atraso, segundo a administração municipal, aconteceu pela necessidade de um aditivo no prazo. A previsão é a de que a obra seja concluída ainda no segundo semestre deste ano. A água do córrego, porém, continua poluída. O projeto inclui criação de áreas de convívio, dentre outras intervenções, a um custo de R$ 20 milhões.

Confinamento potencializa enchentes nas cidades

“Perto de muita água, tudo é mais feliz”, dizia Guimarães Rosa. Essa máxima passou a ser percebida por muitos especialistas e gestores, que têm apostado na revitalização e integração dos rios à paisagem urbana. Mais do que tornar a cidade bonita e agradável, esse novo modelo também pode ser mais eficiente no controle de enchentes.

Muitas vezes, reforçam os especialistas, a canalização pode produzir o efeito contrário. Isso porque a retificação dos cursos d’água faz com que ela corra de forma mais agressiva, provocando fortes cheias. Serpenteando em seu traçado natural, a água encontra obstáculos e perde força.

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