Sem banquinho ou violão, mas em alto e bom som, Lúcia canta o melhor do samba. Com cuidado e atenção, Elias usa a talhadeira para transformar madeira em adornos. E de coroa, manto e cajado, José celebra uma secular manifestação religiosa de influência africana.
A sambista, o entalhador e o rei do congado poderiam ser apenas três personagens da cultura popular. Porém, tradições como essas, referentes à identidade belo-horizontina, começam a ser mapeadas e poderão até ganhar prêmios em dinheiro na capital.
Em iniciativa inédita, a Fundação Municipal de Cultura (FMC) irá selecionar três cidadãos reconhecidos como mestres da cultura popular de BH. A proposta visa identificar patrimônios vivos da metrópole mineira, promover ações de valorização e até garantir registros de tombamento imaterial.
Para concorrer ao cargo, o candidato deve ter idade igual ou superior a 60 anos, morar na cidade e ser atuante em seu ofício há pelo menos uma década. Forte concorrente, Lúcia Santos é o exemplo de pessoas descobertas artisticamente na maturidade.
Aos 30 anos, já casada e com um filho, ela iniciou a trajetória na música. Hoje, conhecida como “Dama do Samba”, faz parte da história da capital. Com uma alegria contagiante, conta que já subiu ao palco ao lado de grandes nomes nacionais, como o de Dona Ivone Lara.
“Toda valorização da nossa cultura é sempre bem-vinda. O artista faz o que faz por amor e poucos são apoiados”, diz Lúcia Santos, que hoje preside a Associação da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte.
O coro em prol do reconhecimento é engrossado pelo aposentado José Amilton Alves, de 68 anos. Nascido em Aimorés, região do Rio Doce, ele veio morar na capital no início da década de 60, quando tinha 17 anos. Hoje, aposentado, segue os passos do pai, Pedro Basílio, que foi rei de congado.
“Ele era da Guarda de Moçambique de Santa Efigênia”, diz, cheio de orgulho. “Hoje, também sou rei e participo de duas guardas, a de São Sebastião do reino de Nossa Senhora do Rosário e a do Gongo de São Bartolomeu. Amo o que faço, mas sempre estamos em busca de apoio para manter a tradição viva”.
Perpetuação
O desejo de José Amilton pela perpetuação da cultura é o mesmo de Elias Farias, de 72 anos. Desde os 12, ele usa uma talhadeira para esculpir e dar o acabamento em pedaços de madeira. O ofício de entalhador, cada vez mais raro, também poderá ser reconhecido pela FMC.
“Aprendi com as mãos para trás, só observando um amigo de nossa família”, afirma Elias. O artesão é o mais velho de quatro irmãos e o único que escolheu como profissão transformar cedros, jacarandás e cerejeiras em oratórios, castiçais e vários enfeites. O ateliê funciona na casa localizada no bairro Salgado Filho, região Oeste de BH.
Nos fundos da residência, o quartinho onde ele trabalha vive abarrotado. Lá, só entra um de cada vez e é quase impossível não tropeçar. “Uma bagunça arrumada”, brinca.
Cultura valorizada e R$ 15 mil no bolso
Os três escolhidos como mestres da cultura popular de BH vão ganhar R$ 15 mil. Segundo a chefe do Departamento de Identificação, Registro e Promoção da Diretoria de Patrimônio Cultural (DIPC), Françoise Jean, a premiação é uma “ajuda financeira” ao detentor do saber para que ele continue exercendo a atividade.
“São pessoas que trabalham sem carteira assinada. Um dos maiores problemas é a falta de uma aposentadoria. Mas temos vários outros objetivos com o prêmio”.
Françoise se refere ao mapeamento das manifestações culturais e de seus mestres. “Hoje não sabemos quem são essas pessoas. A partir das inscrições, vamos ter condições de identificá-las”.
Ela lembra que mais do que ter um dom ou simplesmente participar de tradição, é necessário ter permanência na atividade e capacidade de transmissão do saber ou celebração.
“Como o mais importante é não deixar que a manifestação acabe, é preciso que o mestre passe o ensinamento para outras pessoas. Ele deve ser reconhecido por uma determinada comunidade”, reforça Françoise.
PARA PARTICIPAR
Cirandeiras, benzedeiras, rainhas de Congado, calceteiros, ceramistas, poetas e lideranças diversas de outras tradições populares podem participar. A inscrição deve ser feita até 25 de julho, na DIPC (rua Professor Estevão Pinto, 601, bairro Serra, região Centro-Sul). O espaço funciona de segunda a sexta, das 9h as 13h, e das 14h as 17h. Informações pelo telefone 3277-5011.