Chronos, garrafas, likes e apepês

20/02/2020 às 11:41.
Atualizado em 27/10/2021 às 02:41

 Ricardo Lima (*)

É sabido que novas tecnologias e incrementos ciberespaciais afetaram a relação espaço x tempo. A forma como sentimos e experimentamos as distâncias, os lapsos temporais, transforma-se na medida em que mecanismos de ordens distintas nos revelam condições cada vez mais céleres de fruir o cotidiano. Ao ministrar cursos costumo usar a imagem de alguma missiva sendo colocada em uma garrafa e despachada numa beira de mar rumo a um destinatário qualquer. A absurda consumação virtual do lento processo de comunicação por meio de frascos e marés contrasta com o imediatismo da vivência on-line. 

Vê-se que a possibilidade de encurtamento subjetivo de distâncias e compressão relativa de tempo resulta numa aceleração da vida, dos ânimos, dos anseios e da própria ideia de urgência. Qual a medida de uma urgência em um mundo de agoras perdidos? Acelera-se o existir. E o presente torna-se um não-lugar, um tempo gramatical afoito, furtivo, esquivo. E tudo isso afeta o pensamento, a inteligência, a reflexão. Sim, porque matutar, cogitar, raciocinar são termos que representam ações, que por sua vez apontam para algo que mobiliza nosso estoque de tempo. A razão parece ter que se reinventar em época onde a comporta por onde escoa as migalhas temporais está cada vez mais escancarada. É Chronos a devorar seus filhos num apetite inédito.

Os textos que circulam pelas redes e apepês cada vez mais resumem trajetos, elaboram e inventam atalhos. Pretendem-se econômicos, ligeiros. Vê-se uma espécie de parcimônia incontida, que devolve a médio prazo uma incapacidade de tecer e elaborar discursos que sejam tão complexos como nossa faculdade imaginativa. 
Há muito venho escutando que as pessoas não sabem mais escrever. Percebo a dificuldade da elaboração escrita, que repercute, claro, na capacidade de argumentação, de comunicação do pensamento. Parece que tal escassez de recursos, neste caso, simplifica, mas também embota a fascinante e difícil tarefa de construir textos, de dar conta da intrincada trama da vida, dos sonhos, e de transformá-los em poesia, narrativas, romances, ou numa conversa distraída que se sustente por mais do que alguns segundos; que inspire o momento mais do que um conteúdo ligeiro; que seja mais importante do que likes ou retwittes; que una, até, reúna, realize e colabore para partilha de um momento “com”. 

A incorreção ao vocalizar o pensamento por meio da linguagem escrita ou oralizada resulta, sim, num fracasso inconteste da capacidade de se expressar. Outro dia, numa palestra sobre empreendedorismo criativo, provocou-se a plateia perguntando o que era mais valioso na vida daquelas pessoas. A resposta: o tempo. Seguindo, perguntou o que aquelas pessoas faziam com o tempo que ainda tinham, para flagrar como se aproveita mal aquilo que julgam ser a coisa mais preciosa de suas vidas. Algo tão valioso deve ser aproveitado, e não descartado. Que tal aproveitá-lo, então, lendo e escrevendo bem aquilo que se quer fazer dito?

(*) Ricardo Lima (Frei), professor, é mestre em História pela UFMG, doutor em Música pela Unicamp e professor dos cursos de Jornalismo e Publicidade da Faculdade Promove

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