Tempestade de lágrimas

29/01/2020 às 19:14.
Atualizado em 27/10/2021 às 02:28

Impossível falar de futebol – mesmo após a segunda vitória do Cabuloso no Mineiro, graças à garotada – em uma semana na qual dezenas de cidades do Estado, especialmente da Grande BH, são devastadas por tempestades de força e volumes inéditos. Efeito inegável do aquecimento global, têm dito. E não há como discordar.

O registro é de mais de 900 milímetros de chuvas na região de Belo Horizonte apenas em janeiro – maior quantidade para o mês em toda a história. Para se ter ideia do que isso significa, basta dizer que a própria capital recebe, em média, cerca de 1.600 milímetros de chuva no ano inteiro. Ou seja, antes dos primeiros 30 dias deste 2020, o céu já despejou 60% de toda essa água sobre nossas cabeças.

Ainda a título de comparação: em Nova York, onde costuma chover “cats and dogs” (expressão inglesa pra descrever temporais), o volume médio anual de chuva fica em torno de 1.700 milímetros. Nosso janeiro, amigos, já cobriu bem mais da metade disso...

Vale lembrar ainda que a cidade pode até ter sido bem planejada. Mas isso valeu para os padrões da passagem do século XIX para o XX, não para os de hoje. As décadas avançaram, a população se multiplicou exponencialmente, até os mais de 2,5 milhões de habitantes atuais, e aquele projeto então moderno e arrojado de Aarão Reis tornou-se tristemente obsoleto.

Sem falar nos inúmeros córregos e ribeirões que cruzam o território de BH – o que poderia até ser visto como algo positivo anos atrás, não agora – e tiveram de ser domados, contidos, canalizados, encobertos, escondidos. Tudo isso enquanto a metrópole se expandia, vertical, horizontal e aceleradamente, e parecia preocupar-se mais em suprimir cada pedacinho de solo permeável que continha, em vez de ampliar áreas verdes que pudessem impedir tamanhas catástrofes.

O resultado, todos vimos. Alagamentos de proporções quase bíblicas em todos os cantos, levando sofrimento a pobres e ricos – não “indistintamente”, por óbvio. Afinal, nas vilas e favelas e em outras regiões menos favorecidas houve também mortos e feridos. Famílias inteiras pereceram diante da falta de uma infraestrutura urbana decente que pudesse acolhê-las.

Já na região Centro-Sul, afora o asfalto revolvido no chão como folha de papel, em ruas charmosas de Lourdes e adjacências, o que mais se viu foram automóveis novos ou seminovos enlameados e batidos, espalhados em um cenário de guerra. Além disso, restaurantes e bares sofisticados, lojas de grife e garagens de prédios chiques também foram severamente atingidos, aos olhos estupefatos de moradores e visitantes que jamais imaginaram que presenciariam aquilo.

Ao ver o enorme empenho das autoridades para mitigar os estragos nos bairros de classe média e alta, imaginei, num exercício singelo de fé no ser humano, um personagem fictício, mas plausível: um gari, morador da Vila Bernadete, no Barreiro, onde, poucos dias antes, outra chuva forte destruiu casas e matou gente.

Agora, ele estaria ali, na rua Marília de Dirceu, junto a dezenas de colegas auxiliados por máquinas pesadas e caminhões, dando seu suor para deixar limpa, o mais rápido possível, uma das partes nobres da cidade.

Não se importava, tenho certeza, com o fato de que, lá no seu bairro, apesar de a calamidade ter sido bem maior – em vários sentidos –, a mobilização sequer chegara aos pés daquela de que participava. 

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