Fora do padrão

12/12/2016 às 20:05.
Atualizado em 15/11/2021 às 22:03

Beth traça um olhar panorâmico sobre o escritório, papéis no chão, livros empilhados e filmes em DVD espalhados por todo o canto. Tenta formular alguma frase, mas só respira fundo e dá meia volta. Há 15 anos eu venho prometendo que, em minhas férias, porei fim ao que ela chama de bagunça – prefiro definir como uma “desorganização controlada”, pois sei onde exatamente onde estão as coisas, embaixo (ou sobre) outras coisas. Voltei agora de minhas férias e, como esperado, apenas peguei em jornais velhos e os reli, checando, sem qualquer pressa, se iriam para a lata de lixo ou retornariam para o lugar de origem. Curiosamente, foi o período em que mais ouvi a palavra “desorganização” no Atlético, que teve jogadores guardando as suas devidas posições, um técnico vencedor e uma das folhas salariais mais altas do mercado brasileiro. No futebol de hoje, não é suficiente as coisas estarem nos seus lugares. É preciso que elas se movimentem constantemente, com atacantes pressionando a saída de bola e os volantes aparecendo como elemento surpresa. Necessitam, enfim, se desorganizarem, indo e voltando. Desde o Carrossel holandês, em 1974, organização se tornou sinônimo de compactação, não bastando ter um jogador talentoso na área só esperando para arrematar. No caso do Atlético, tínhamos na frente nada menos do que três artilheiros – Fred, Robinho e Lucas Pratto, ataque de dar inveja a muita equipe do Brasileiro. Na maioria das vezes, quando a bola chegava neles, era puro encantamento, passes e gols para ficarem na memória. Ou, por mais raiva que sintam por um ano sem títulos, irão se esquecer daquele “gol que Pelé não fez”, do meio da rua, feito por Cazares, na final da Copa do Brasil? E os gols de Robinho, suas jogadas, suas pedaladas? Nada disso conta? Não foi um ano perdido. Lutamos por títulos do início ao fim do ano, do torneio na Flórida, passando pela Libertadores, até o vice-campeonato na Copa do Brasil. Explico isso para a Beth, como comparação, mas ela quer resultados, fazendo uma leitura mais empresarial, em que organização é o mesmo que “dispor de um sistema para obter a finalidade pretendida”. Diante dos nossos quatro gatos, três deles felinas que parecem não se importar com a minha aflição, lembro para a Beth que a Holanda de Rinus Mitchell era uma “desorganização organizada”. Zagueiro virava lateral, lateral era beque e atacante podia se tornar uma meia de contenção. À primeira vista, não dava para entender nada, mas havia um sentido ali, assim como o meu escritório. Tudo tem uma história, uma motivação. As credenciais de festivais de cinema, aninhadas atrás da porta, me fazem viajar no tempo, dos encontros com pessoas que hoje são muito próximas. Os desenhos do Breno e da Julia ainda me remetem ao pai que gosta de fazer palhaçadas. “Você vive de passado”, reclama a Beth. Olho para o Felix em busca de apoio, mas o gorducho se contorce e começa a se lamber.  Enquanto troco a água dele e passo a mão no seu barrigão (hoje certamente ganharia o nome de Garfield), respondo em meus pensamentos, lembrando que o Galo é o que é hoje devido a seu passado recente, indo para a sua quinta participação consecutiva na Libertadores. Isso não se constrói do nada. Há uma base, uma história, um vontade de... Felix corre para a sua caixa de areia, que eu acabei de limpar, para deixar sua marca registrada. Sigo para a sala, receoso de mais sermão, mas a reencontro reclamando com a empregada por ter organizado os livros da estante da sala pela cor. Jessica só reproduziu o que viu num programa na GNT, sobre arrumação de casas. Na verdade, não havia uma “organização” antes, apenas uma ordem muito subjetiva da Beth, de livros que mais gostava. O que só mostra que cada um tem seu próprio conceito do que é organização.

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