A certeza de Platão

13/02/2020 às 17:06.
Atualizado em 27/10/2021 às 02:37

Daniel Medeiros

O jovem e inteligente Platão admirava Sócrates, que não temia a morte, mas sim uma vida sem questionamentos. Uma vida que não exercite o espírito, que não busque o conceito e que depois não viva de acordo com ele, é uma vida pela metade ou – para usar uma imagem da alegoria de Platão – apenas uma sombra projetada na parede. Viver é conhecer e conhecer é lembrar. Lembrar das formas perfeitas em um universo perfeito e imutável. E viver o mais próximo possível dessa ideia é poder compartilhá-la. E assim, com a morte – desejada e não temida – juntar-se às outras almas neste mundo de perfeição e eternidade.

Nesta semana vivi uma experiência inédita. Internei meu pai em uma UTI para realizar uma operação contra o câncer. Meu pai, militar, homem orgulhoso e de ideias acabadas, capaz de julgar os outros de forma definitiva, agora sucumbia a um defeito do corpo quase octagenário. E coube a mim a experiência de vê-lo despojar-se de suas convicções arraigadas, ideias perfeitas, posições intransigentes e vestir a batinha azul clara que lhe deixava à mostra a bunda magra, enrugada, para o escrutínio de qualquer civil.

Vi então a dúvida em seus olhos e busquei respondê-la com a fé que roubei dele, porque nunca a tive. Assumi a pose dele: firme, decidido, certo, incapaz de erro. “Vai dar tudo certo, pai”. E sustentei o olhar até que o simpático enfermeiro o levasse para a sala de operações. Platão morreu aos 80 anos e, em suas últimas obras, imaginou a figura de um demiurgo, de um criador de todas as coisas perfeitas. O que moveria esse criador a criar foi a pergunta que atravessou os séculos e provocou discussões infindáveis. Se faltava alguma coisa, como a criação pode ter sido de coisas perfeitas? Se era apenas um capricho do criador, como essa veleidade pode ser tão admirada? Se foi apenas acaso, para quem se dirigir em busca de referência? Platão deve ter tido suas amarguras de fim de vida, queimando por dentro diante da dúvida que é a mais humana das questões: e se?

No momento em que escrevo este texto, meu pai ainda está na UTI e ainda há risco para ele. Os médicos e enfermeiros debruçam-se sobre os exames, discutem coisas e depois saem e entram com ampolas e cateteres e mexem no corpo dele – e meu pai, como cachorro molhado, com o canto do olho, me procura até enquadrar-me em seu campo de visão, buscando aquela certeza, aquela convicção que agora deposita em mim como vaso frágil, com as trincas escondidas, viradas para trás. Sorrio, faço sinal de afirmativo e brinco com a situação e os médicos e enfermeiros reverberam meu otimismo: “tá quase bom, é só consertar mais essa besteirinha aqui e pronto”. Depois saem e meu pai tenta se acomodar e volta o corpo para o outro lado. A bata se abre e mostra o corpo com o qual ele já não parece se importar tanto.

Platão disse que o corpo é o cárcere da alma, o obstáculo para a segunda navegação. Platão era um homem forte e viveu até a idade que meu pai tem agora. O que terá pensado Platão quando sua vida fluiu de seu corpo? Terá se sentido aliviado? Animado? Ou o terror da dúvida pôs por terra suas convicções e ele inteirou-se de sua humanidade frágil e efêmera? Não posso saber. Busco animar meu pai e dizer que logo estaremos em casa.

Professor, doutor em Educação Histórica

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