Aborto– restringir ou liberar?

13/08/2018 às 22:59.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:54

Antônio Álvares da Silva

A discussão sobre aborto voltou à pauta do dia, confirmando a lição de que o pêndulo da história muitas vezes bate para trás, outras vezes para frente, no vaivém do eterno movimento do homem no tempo.
Nas ciências humanas, ao contrário das físico-químicas e matemáticas, não existe certeza absoluta. Tendo o homem como centro de suas construções, recebe dele a incerteza e a relatividade de sua própria vida. Não se fará nunca um teorema do homem, porque não é possível uma hipótese absoluta. E assim sempre será.
Com o aborto não é diferente. As ideias variam conforme a visão social, política, religiosa e filosófica. Há bons argumentos de ambos os lados e ao Supremo ou ao Congresso caberá a última palavra, inclusive a deixar tudo como está.
Nosso Código Penal foi limitativo e só admite o aborto em três casos: estupro, gravidez com risco para a mulher e se o feto for anencéfalo.
Os principais argumentos em favor da criminalização são os seguintes: a Constituição garante o direito à vida. O STF, julgando o aborto, faz ativismo judicial. O tema pertence ao legislativo. O feto não é parte do corpo, (concepção clássica greco-romana|) mas entidade autônoma que merece consideração própria. Há risco de vida das mulheres que procuram pessoas inabilitadas e adotam meios desapropriados para a prática informal do aborto. O direito à vida é o mais nobre de todos os direitos. Praticar aborto é violá-lo. Por isto deve ser criminalizado e punida sua prática.
Vê o leitor que os argumentos são profundos, polêmicos e se sujeitam a múltiplas impugnações. Na verdade, o direito à vida está garantido constitucionalmente e figura em todas as declarações de direito do mundo moderno. Mas o que é “vida” ? Quando há concepção? Para se falar em vida, tal como a conhecemos, é preciso órgãos, consciência, cérebro e coração que ainda não existem plenamente no feto. A vida é um ato complexo, fisiológico e social, que permite ao homem conviver com os demais, só adquirindo a maturidade plena com a vida fora do útero.
Se se quer proteger efetivamente, isto se dá na vida fora do corpo da mulher, na atividade inter-relacional do homem com os demais seres vivos. Não se preserva a vida quando há falta de alimento, habitação, ensino, condições saudáveis de se viver, poluição, etc. É aqui que se deve concentrar a tutela jurídica e social. Protegendo-se plenamente a mãe, protege-se também o feto. O direito à vida é de ambos.
O STF não pratica ativismo judicial. Apenas discute a competência que a Constituição lhe deu de manter íntegros os direitos e garantias fundamentais. Se o problema se deslocar para o Congresso, o que ele vai fazer é a mesma coisa, embora por meios diversos: o Supremo interpreta a Constituição pelos seus votos, e o Congresso, por lei. Mas ambos chegam necessariamente ao mesmo ponto.
A proteção da mulher grávida que queira praticar aborto deve ser assistida por médicos, em hospitais ou locais apropriados. As estatísticas mostram que muitas morrem ou ficam com sequelas irremovíveis enquanto a categoria abastada faz o aborto, principalmente o irregular, em hospitais ou no estrangeiro, pagando pelo ato com a dissimulação do serviço médico que realmente houve. Há até clínicas de luxo para burlar a lei. Já a mulher pobre não tem acesso a nada disso. Vai procurar a parteira, o farmacêutico do interior, o “médico” prático. E aqui muitas vidas se perdem. A experiência mostra que um grande número de mulheres, quando não querem ou não podem ter filho, aborta de qualquer forma. E o que se espera do legislador é que conheça a realidade para a qual tem de legislador. Ficar a lei contra o fato a que visa regular é uma imperdoável e absurda contradição.
A liberdade da mulher deve, sim, ser também considerada. Ela tem direito de querer ou não querer ter filhos. E esperar o momento certo para engravidar-se, em condições favoráveis, psíquicas e econômicas, para melhor protegê-los e criá-los. Aqui é que deve atuar o legislador, criando estas condições benéficas que já existem parcialmente e precisam ser ampliadas no Direito do Trabalho com regras contra a discriminação da mulher, proteção à maternidade, horário de trabalho, berçários, escolas, salário justo, etc.
A lei não deve impor às mulheres se devem ou não abortar. A responsabilidade é dela e não do legislador, pois a ela é que cabe a criação dos filhos e não ao Estado.
O aborto sempre existiu, desde os tempos imemoriais até hoje. E existirá sempre queiram ou não as religiões, os legisladores ou os tribunais. Opor obstáculo ao curso da História ou querer mudar-lhe a direção é tarefa inútil e pouco sábia. Muito melhor é compreender os fatos sociais e dentro deles fazer justiça sem querer mudar-lhes o rumo. Desviar a História humana de seu caminho é tarefa impossível para os mortais que vivem na terra.

*Professor titular da Faculdade de Direito da UFMG

 

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