Micróbios não têm nacionalidade

05/06/2020 às 19:58.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:42

Débora Brito Goulart*

Vivenciamos uma nova pandemia causada pelo coronavírus e sua doença resultante, a Covid-19. A crise exige uma resposta prática e todos nós desempenhamos um papel importante para impedir a propagação do vírus e minimizar perdas humanas. Além dessa emergência sem precedentes, asiáticos, judeus, imigrantes e outros grupos enfrentam uma camada adicional de pressão: a culpa pelo vírus. Culpar “o outro” pela disseminação de pandemias é um tema comum ao longo da história. Na Idade Média, os judeus foram acusados de causar a peste bubônica. No início do século 19, os imigrantes irlandeses foram responsabilizados pela cólera. Nos anos 80, a comunidade LGBT foi difamada durante a epidemia de AIDS. Em cada caso, a comunidade acusada experimentou marginalização, opressão e violência.

Em pleno 2020, asiáticos estão sendo atacados em todo o mundo como supostas fontes da “gripe chinesa”. Os extremistas têm trabalhado diligentemente online para difundir a linguagem odiosa em torno da doença. Pois bem, deixe-me contar-lhes um fato científico: micróbios não têm nacionalidade. E isso sim é um argumento comprovado cientificamente, não uma mera opinião. Chamar o novo coronavírus de “vírus chinês”, deliberada e cinicamente, é uma prática covarde porque o ódio nunca se limita a apenas um grupo. Extremistas estão promovendo teorias da conspiração sobre o coronavírus que também visam judeus, imigrantes e outros grupos marginalizados. Um fato que venho observando é que quando pessoas têm o seu ego abalado, se sentem no direito de apontar o dedo para quem mais lhes convém. A conveniência é irônica e patética.

Incidentes de preconceito geram medo - não apenas para as vítimas, mas para comunidades inteiras. Esse medo pode ser avassalador e dificultar que indivíduos e grupos visados pratiquem até os atos mais básicos da vida, como obter suprimentos necessários ou servir nas linhas de frente da luta contra a pandemia. Infelizmente, a retórica odiosa tem se tornado cada vez mais pronunciada nos últimos meses. Devemos rejeitar o incitamento à violência e estar especialmente vigilantes em meio a uma crise global, quando todo indivíduo tem um papel crítico a desempenhar. Nossa sobrevivência não será aprimorada pelo racismo, muito menos por sua negação. Em um nível individual, nosso sistema imunológico é aprimorado pela compaixão e danificado pelo desprezo e pela ignorância conveniente.

Micróbios não se preocupam com a nossa nacionalidade, religião, cor ou gênero. Para o coronavírus, somos todos o mesmo item no menu: carne humana fresca e suculenta. Se não gostamos desta idéia, é melhor trabalharmos juntos contra o vírus, em vez de culpá-lo por ser um artefato chinês produzido em laboratórios de Wuhan. O grande problema é que no caso atual, o pensamento de conspiração é imune às evidências científicas e completamente oposto ao pensamento racional. De maneira geral, os teóricos da conspiração demonstram um pensamento contraditório apresentando-se como vítimas e heróis. Eles se vêm como heróis de posse da “verdade”. Mas eles também se vêm como vítimas pois sentem que estão sendo perseguidos pelo o que quer que seja. 

Paremos de usar a pandemia para alimentar o ódio e promover políticos. Lembremo-nos sempre do ensinamento do apelidado filósofo Marco Aurélio “Tudo o que ouvimos é uma opinião, não um fato. Tudo o que vemos é uma perspectiva, não a verdade”. Pensamento crítico, sempre.

Débora Brito Goulart*

*Bacharel em medicina veterinária (UFMG), especialista em ciência animal (Universidade de Minnesota), mestre em ciência dos alimentos (Universidade de Wisconsin) e doutoranda em microbiologia e imunologia (Universidade Estadual de Iowa). dgoulart@iastate.edu.

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