Novo episódio de Matrix cria expectativa entre cinéfilos e filósofos

22/11/2021 às 19:59.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:18

Vinicius Prates*

São muitas as vezes nas quais um filme desperta a atenção e o debate de filósofos (das universidades ou da vida, todos são bem-vindos), porque lidam com algum tema relacionado à ética, à estética ou à política. Muito mais raro, no entanto, é que um blockbuster de ação da grande indústria de Hollywood possa suscitar algum tipo de questão metafísica. Mas é justamente o que a série Matrix faz, desde o primeiro filme da franquia, que estreou na virada do milênio, em 1999, protagonizado por Keanu Reeves e Carrie Anne-Moss.

Matrix foi considerado uma revolução, porque conseguiu unir o sucesso estrondoso de público com o respeito da mídia especializada, o que é bastante difícil de acontecer. O filme, ao mesmo tempo em que lidava com questões sensíveis para o imaginário da época, inovava nos efeitos especiais e nas cenas de ação, além ainda de influenciar a moda, com os estilosos terninhos e óculos escuros de heróis e vilões. A atmosfera cool, com muitas cenas indoor, paleta discreta de cores e iluminação sombria, remetia aos filmes noir dos anos 1940 e 1950 (a impressão é que não chamaram Humphrey Bogart para o elenco, menos pelo fato de ele já estar morto - afinal quase tudo se pode na programação da Matrix - e mais porque ele não poderia fumar seus cigarrinhos).

Já as duas sequências, exibidas num intervalo de seis meses em 2003, não tiveram o mesmo sucesso nas bilheterias e sofreram com avaliações negativas dos críticos. Uma espécie de consenso entre os fãs é que a repetição dos maneirismos propostos no primeiro filme acabou por suplantar a narrativa e, principalmente no caso do terceiro, o roteiro se perdeu em aporias, que foram mal disfarçadas pela ênfase cada vez maior nas cenas de ação.

Agora, no entanto, nesse 2021 praticamente pós-pandêmico, passadas duas décadas em hibernação, os heróis Neo e Trinity estão com data marcada para voltar às telas no próximo dia 16 de dezembro. A direção continua com as irmãs Wachowski, Lilly e Lana. A simples divulgação do trailer, com os mesmos atores principais, já vem causando muita expectativa, e mais uma vez em dois universos que quase sempre são incompatíveis: os fãs se apressam para comprar seus ingressos, tiram a poeira dos bonequinhos e separam o dinheiro da pipoca, enquanto intelectuais e acadêmicos agendam as conferências e se preparam para os pedidos de entrevistas, num efeito que repete o lançamento da série original.

Embora muitos filósofos, comunicólogos, psicanalistas e sociólogos tivessem se debruçado sobre os filmes dos anos 2000, três deles estiveram no centro das atenções. As próprias diretoras foram responsáveis por apontar como o principal influenciador da obra, o francês Jean Baudrillard, principalmente por meio do livro Simulacros e Simulação (Editora Relógio D’Água, 1991). Baudrillard chegou a ser convidado para orientar o argumento das continuações, mas declinou. Ele na verdade não gostou do primeiro episódio, e declarou numa entrevista que “Matrix é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”. Baudrillard criticou a ausência de ironia em Matrix, e de ter se tomado os princípios de “simulacro” e “simulação” a partir das categorias da realidade - citado em Wilson Ferreira (2012): “Matrix revisitado: por que Jean Baudrillard não gostou do filme?”.

Žižek, parte de um princípio parecido. Ele tem um livro lançado em 2002 e traduzido para o português em 2003 pela Boitempo Editorial que trata sobre uma série de questões filosóficas e políticas sob o prisma do filme. O título é justamente a mais famosa fala do primeiro episódio, quando o personagem Morpheus, o iniciador de Neo, lhe dirige um “Bem-vindo ao deserto do Real!”. Neste livro, o filósofo esloveno lida com os principais fatos da virada do milênio, principalmente os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, buscando inseri-los na perspectiva do espírito da época desdobrada a partir da sensibilidade das Wachowski, por meio de sua exótica e potente mistura de filosofia hegeliana e psicanálise lacaniana.

Curiosamente, uma coletânea do filósofo norte-americano William Irwin (nascido em 1970) tem o mesmo título do livro de Žižek (com exceção do ponto de exclamação). Bem-vindo ao deserto do Real (lançado no Brasil pela Madras em 2003), por sua vez é um mergulho no filme, de uma maneira mais particularizada. Ele procura em suas quase 300 páginas dissecar os diálogos, desvendar as cenas, sem as mesmas derivações de sua obra quase homônima, e só então, a partir disso, buscar os componentes de reflexão sobre a época conturbada do lançamento.

Agora, teremos uma nova oportunidade, mais uma vez dada por Matrix para, como na série inicial, nos divertir com a ação e os efeitos especiais, mas não só isso: parar por um momento e pensar. Passados 20 anos, entramos na era da velocidade de conexão 5G, do reconhecimento facial, os supercomputadores quânticos, do metaverso. As redes sociotécnicas comandam nosso cotidiano, e as fakenews são uma questão definidora para a sobrevivência das democracias como as conhecemos. Se nos primeiros episódios muitos desses elementos que ainda surgiriam foram adiantados, o que esperar agora? O que a Matrix vai nos dizer a respeito das próximas décadas? Nem é preciso dizer: basta ver o trailer e ninguém vai resistir à pílula vermelha.

*Jornalista e professor do Centro de Comunicação e Letras (CCL) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

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