O papel dos bibliotecários em ano eleitoral que promete muita desinformação

18/01/2022 às 18:54.
Atualizado em 21/01/2022 às 12:16

Álamo Chaves*

Ao pintar o afresco “A expulsão de Heliodoro”, entre os anos 1511 e 1512, no aposento Stanza d’Eliodoro, no Vaticano, Rafael Sanzio não pretendia apenas retratar a passagem homônima narrada no segundo livro dos Macabeus - o texto bíblico diz que, por ordem de Seleuco, rei da Ásia, o intendente Heliodoro foi mandado ao Templo de Jerusalém para confiscar o dinheiro que lá havia; no entanto, atendendo às súplicas do povo, Deus enviou um cavaleiro que expulsou Heliodoro do local. O pintor renascentista, no entanto, queria legitimar as constantes guerras promovidas pela Igreja Católica em prol de um “motivo santo”. Essa intenção fica evidente quando se observa o lado esquerdo do afresco, onde o Papa Júlio II é retratado observando a cena da expulsão.

A atitude de Rafael, portanto, foi a de distorcer a realidade em benefício próprio e de terceiros - que, no caso era a Igreja, financiadora de seus serviços. Esse tipo de conduta tem registros datados muito anteriores à época do pintor. Na Espanha do século IX, por exemplo, durante a Reconquista Cristã - guerra travada, principalmente, entre a Espanha e os povos árabes -, floresceu uma enorme devoção à “Santiago Matamoros”.

A veneração surgiu por meio do rei hispânico Ramiro I, que, à época dos conflitos, espalhou o boato de que São Tiago Maior, apóstolo de Jesus, havia aparecido a ele em sonho dizendo que estaria presente em vários combates montado em um cavalo branco para aniquilar os inimigos (por isso o nome “mata mouros”).

Ainda que as chances disso realmente ter acontecido sejam bem próximas de zero, os hispânicos acreditaram e se encarregaram de espalhar o boato de geração em geração, de modo que a história de “Santiago Matamoros”, que mescla lenda e realidade, exerceu grande influência na formação da identidade nacional espanhola. E o infame título de “Matamoros” foi por muito tempo evocado pelos católicos para tratar São Tiago.

Os casos relatados são apenas dois exemplos de como a distorção de um fato pode ter imensa amplitude e reverberar por muito tempo, principalmente se forem oriundos de pessoas que exercem grande influência na sociedade. À vista disso, com a chegada de um ano eleitoral que promete manter forte polarização entre os brasileiros e contar com uma saraivada de fake news na internet, torna-se necessário atentar - mais uma vez - para o cuidado com a desinformação.

É bem provável que vamos nos deparar novamente com publicações que distorcem dados e fatos no intuito de beneficiar algum candidato especificamente. À exemplo de 2018, deveremos ter que lidar com líderes religiosos lançando mão de malabarismos retóricos a fim de alinhar discurso de ódio à Bíblia, socialistas tentando defender o livre mercado e políticos inescrupulosos desdizendo o que haviam dito antes.

Nesse contexto, os bibliotecários, assim como outros profissionais da informação e da comunicação, têm o dever de promover fontes de informações oficiais e confiáveis para combater as notícias falsas e reforçar seu papel de disseminador do conhecimento validado.

Fake news é crime previsto na legislação penal. Por isso, cabe a esses profissionais encabeçar campanhas contra a desinformação para que seu público tenha acesso a materiais de qualidade, tanto na internet quanto impressos, além de contribuir para o esclarecimento da sociedade como um todo.

*Presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia 6ª Região de Minas Gerais e Espírito Santo (CRB-6)

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