Sonho de marca genuinamente nacional morre com a Troller, antecipando derrocada do setor automotivo

23/08/2021 às 20:41.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:44

A novela do encerramento da produção da Ford, no Brasil, episódio sintomático da debandada da indústria automotiva, chegou no seu último capítulo com a Troller. A marca cearense, que se tornou uma subsidiária da gigante norte-americana em 2007, chegou a “subir no telhado”, na semana passada, e foi resgatada de lá por um comunicado que lhe garantiu sobrevida, mas só até o mês que vem. Depois, seus mais de 450 trabalhadores serão dispensados e o Brasil voltará à estaca zero no sonho de ter uma montadora genuinamente nacional. “Estamos adotando o caminho inverso ao dos países centrais, como Alemanha, Estados Unidos e China, desmobilizando ou enfraquecendo os instrumentos positivos de política industrial, implementados a partir de 2003”, alerta a Nota Técnica 259, publicada no mês passado, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Esta é a grande questão por trás do fechamento da Troller que, por determinação da matriz norte-americana da Ford, não poderá ser continuada, já que tanto a marca quanto o projeto do jipe T4, não serão negociados. “Esta posição é indesejada por nós”, afirmou o secretário de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (Sedet) do Ceará, Maia Júnior. “O terreno – onde a fábrica da Troller está instalada – foi doado pelo Estado e de que adianta vender só o maquinário e a planta, se não será possível seguir com o produto?”, acrescentou.

O fato é que a Ford, que não está dando a mínima para o aspecto econômico da Troller, não tem nenhum tipo de envolvimento humano com o Ceará, com o Brasil ou com “Isengard”. Trata-se de uma questão jurídica, que se resume a tratar da extinção dos contratos e conduzir a liquidação dos negócios – o brasileiro precisa, real e urgentemente, entender que não existe sentimento entre um CNPJ e uma pessoa física. No fim, sairá perdendo quem acreditou que a Ford cumpria alguma função social ali, em Horizonte (CE). O secretário Maia Júnior terá que engolir sua “indignação”, até porque esperar “que a Ford norte-americana e a do Brasil não prejudiquem o desenvolvimento e os trabalhadores cearenses” é de uma infantilidade incompatível com o cargo executivo que ele ocupa, na estrutura administrativa.

Fato é que o Brasil não terá tempo sequer para reavaliar sua posição e suas ambições, no que tange à inserção nacional no negócio automotivo global. Infelizmente, perdemos o bonde da história e não há risco em afirmar que, daqui para frente, jamais teremos uma montadora capaz não só de atender a demanda interna específica, mas também de competir no mercado internacional. Pior, desde 1996, ano do fechamento da Gurgel, o sonho da autonomia brasileira neste setor parece ter sido, definitivamente, enterrado. Curioso é que a Fábrica Nacional de Motores (FNM), estatal fundada durante o Governo Vargas, em 1942, já produzia caminhões no país, em 1949, enquanto o primeiro veículo automotor chinês só saiu da linha da montagem da FAW, em Changchun, sete anos depois – hoje, a China conta com mais de 80 marcas de automóveis de passeio e modelos comerciais.

Pior ainda, enquanto o setor produtivo mingua, no Brasil, até mesmo os países da África Subsaariana vêm atraindo investimentos e prova disso é a recente concórdia entre a influente e poderosíssima Associação Alemã da Indústria Automotiva (VDA) e a novíssima – criada em 2015 – Associação Africana de Fabricantes Automotivos (AAAM). “Todo grande mercado de hoje começou pequeno, no passado. É fundamental se adaptar às características e à evolução de um mercado, desde o início”, disse à Deutsche Welle o diretor de negócios para governos e sociedades da VDA, Kurt-Christian Scheel. “No caso do mercado africano, existem boas perspectivas de crescimento e enxergamos no continente um potencial que ainda é pouco explorado”, acrescentou. E os alemães enxergam longe, quando se trata da prospecção de novos mercados para seus veículos.
 

Fato é que o Brasil não terá tempo sequer para reavaliar sua posição e suas ambições, no que tange à inserção nacional no negócio automotivo global

Tanto no Brasil quanto na China, onde a Volkswagen se instalou na década de 80, quando pouquíssimas pessoas tinham acesso e um automóvel de passeio (um carro particular), os germânicos foram assertivos – hoje, a VW é a marca com maior participação no mercado chinês, que responde por quase 40% do volume global de vendas do setor. Com 45 veículos para cada grupo de mil habitantes, atualmente, o continente africano está longe das médias norte-americana (837 veículos para cada grupo de mil habitantes), chinesa (173 veículos) e mundial (203 veículos para cada grupo de mil habitantes), mas a indústria olha é para o futuro de um mercado de mais de um bilhão de consumidores, enxergando melhores oportunidades de negócio, lá, do que na América do Sul.

Potencial

“Embora os volumes ainda sejam pequenos, a região subsaariana tem potencial para se tornar um grande mercado, no futuro”, avalia o presidente-executivo (CEO) da subsidiária ganesa da Volkswagen, Jeffrey Oppong Peprah. A VW já produz em cinco países africanos: África do Sul, Quênia, Nigéria, Gana e – pasme! – Ruanda. Entre os modelos, destaque para o sedã Passat, o utilitário-esportivo (SUV) Tiguan e a picape Amarok. “O aumento da renda, em função do pagamento de salários dignos, vem aquecendo a demanda local, especialmente para carros de passeio. Há um rápido processo de industrialização, geração de empregos e um enorme potencial para o setor automotivo, na África Subsaariana”, analisa o diretor para o segmento automotivo da consultoria IndustriALL, Georg Leutert, no relatório oficial da empresa do ano passado.

Enquanto o Brasil assiste, impotente, à debandada de marcas e o encerramento de linhas de montagem, a AAAM enxerga os investimentos em países como Angola, Costa do Marfim, Senegal e Uganda como o marco inicial para a criação de grandes centros regionais que garantirão sinergia para sua nova cadeia automotiva. “As vendas de modelos zero-quilômetro, na África, crescerão de 1,1 milhão de unidades, em 2019, para cerca de três milhões de unidades, em 2035”, declarou o diretor-presidente da AAAM, Dave Coffey. “Países como o Marrocos e a África do Sul, que já se industrializaram, terão uma progressão mais rápida, mas o continente terá que concluir este processo de uma maneira consolidada, para criar uma demanda sustentável. Hoje, se derrubássemos todas as barreiras tarifárias, por exemplo, não haveria uma resposta imediata, em termos de mercado”.

Ou seja, enquanto o Brasil caminha, lentamente, para trás, a África avança no mesmo ritmo, só que para frente. E não se pode desprezar a recém-criada área de livre comércio africana que, na contramão do enfraquecimento do Mercosul, fortalece o continente com uma perspectiva positiva para o futuro. Como se pode notar, o fechamento da Troller, além de todas as questões econômicas e industriais que ele implica, são apenas a ponta do iceberg.

O pior de tudo, no entanto, não é só a concorrência que a indústria automotiva africana representará, em pouco tempo, mas a forma com que ela vem sendo erigida: o maior grupo egípcio do setor, a Ghabbour Auto, por exemplo, tem capital 100% nacional e um portfólio que contempla quase 40 veículos (entre modelos em produção e descontinuados), de seis marcas diferentes. O empreendimento, semelhante ao do Grupo Caoa, retém expertise e agrega competência à indústria local, evitando que milhares de postos de trabalho sejam reféns das expectativas financeiras de matrizes estrangeiras.

“Temos décadas de experiência, neste negócio, e flexibilidade para nos adaptarmos às flutuações do mercado de automóveis”, pontuou o presidente-executivo (CEO) da empresa, Raouf Ghabbour, em entrevista à rede pública canadense TVO. “Partilho da mesma filosofia implementada pela indústria automotiva sul-coreana, quase três décadas atrás. Depois de escolherem alguns mercados para testarem a qualidade de seus produtos, como o Oriente Médio e a própria África, seus engenheiros desenvolveram produtos e soluções de gestão que qualificaram o país para exportar em nível global”.
 

O pior de tudo, no entanto, não é só a concorrência que a indústria automotiva africana representará, em pouco tempo, mas a forma com que ela vem sendo erigida

Enquanto o Egito, entre outras nações africanas, recebe aporte para o desenvolvimento de produtos massivos, o Brasil parece não conseguir se libertar da herança colonial. Esperamos, na janela, pelo príncipe que vai nos tirar do Terceiro Mundo e, como num passe de mágica, nos içar a um posto ao lado de China, Alemanha, Japão e Estados Unidos – isso, quando nossas exportações de veículos caíram 35,5%, na última década. Hoje, só a recuperação do mercado interno pode contribuir para a permanência das montadoras, no Brasil. Mas isso exige uma prescrição diferente da atual.

“É preciso mudar a política macroeconômica vigente, com o abandono do receituário neoliberal e sua substituição por um modelo de desenvolvimento nacional, liderado pelo Estado, com políticas que valorizem a criação de empregos de qualidade, induzindo o investimento privado e o consumo das famílias”, aponta o relatório “A desindustrialização e o setor automotivo: retomada urgente ou crise sem fim”, do Dieese. Paralelamente, no Quênia, a Mobious Motors (fundada em 2009) está desenvolvendo um SUV que custará US$ 12.500 (o equivalente a R$ 66,1 mil); no Zimbábue e no Botswana, um novo modelo da Mureza (marca sul-africana) será produzido e vendido por US$ 12.450; a Kiira Motors (de Uganda) confirmou o lançamento de modelo híbrido, em Uganda, e a Innoson (da Nigéria), um popular de US$ 9.555.

É inequívoco que, há décadas, a indústria automotiva brasileira se contenta com migalhas, mas pode ser que, em breve, as multinacionais resolvam pôr a mesa em outro lugar – em outro continente. E, daí, nem as sobras que elas sempre deixaram cair nos restarão...

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