A mania brasileira de culpar a vítima

Ricardo Galuppo
30/03/2014 às 16:48.
Atualizado em 18/11/2021 às 01:50

O mais espantoso diante da indignação geral causada pela pesquisa sobre a Tolerância social à violência contra a mulher, divulgada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) na quinta-feira passada, é justamente o espanto provocado pelos dados. A pesquisa, como vem sendo divulgado com insistência nos últimos dias, demonstra que, na visão de 58% dos brasileiros, a culpa pelo estupro é da vítima.

E mais: 65% dos entrevistados consideram que as mulheres em trajes que expõem partes do corpo merecem ser atacadas. Os dados são preocupantes, incomodam e a primeira reação (ou melhor, a saída mais fácil) diante deles é reduzir o problema ao machismo que reina na sociedade. A questão, no entanto, é muito mais profunda: quem observar o comportamento geral da sociedade notará que as revelações feitas pelo IPEA refletem um aspecto especialmente delicado de nosso comportamento: entre nós, tornou-se comum culpar a vítima não apenas pela violência sexual, mas por uma série de violências que podem até ser menos hediondas, mas que são igualmente aviltantes.

Antes que alguém defenda a substituição da minissaia pela burca muçulmana como o remédio para a violência ou proponha apedrejamento em praça pública das que não "andarem na linha" como exemplo para que as demais se comportem, é bom parar e refletir. A verdade, por mais dolorosa que seja, é que a sociedade brasileira tem revelado, nos últimos anos, traços que apontam na direção oposta da que sugere sua autoimagem de nação avançada e moderna. É comum ouvirmos por aí que a culpa pelo assalto é do dono que não trancou a casa direito -- e não do ladrão que a invadiu para roubar. Também é comum ouvir torcedores de clubes de futebol beneficiados pelo apito dos árbitros comemorar um título dizendo o que importa se houve roubo.

O importante é a vitória, ainda que fraudada. Na mesma linha, também é comum ouvir militantes de partidos políticos que têm integrantes flagrados em atos de corrupção se defenderem acusando os adversários de comportamento idêntico -- como se o roubo de um autorizasse o outro a também meter a mão no dinheiro do povo. O gesto de políticos exibindo punhos cerrados ao serem presos, como se viu no episódio recente do mensalão, mostra que, no Brasil, assim como é hábito culpar a vítima pelo estupro, também é comum ver culpados posarem de vítimas.

Os casos podem parecer desconexos, mas, no fundo, são uvas da mesma cepa. O Brasil só será um país maduro e avançado no dia em que a sociedade aceitar que a lei que vale para um vale para todos e entender que nada, absolutamente nada, justifica violência, fraude ou corrupção. E essa aceitação só virá com o tempo, mas não virá sozinha.

A sociedade precisa entender que não basta se considerar avançada para ser avançada e que nem tudo na vida se resolve na base do rolezinho e das manifestações na Praça Sete. É preciso, imediatamente, passar a discutir os limites que separam o direito coletivo do direito individual. Os números do IPEA, embora não devessem causar espanto, são um excelente ponto de partida para a discussão desse assunto.

Ricardo Galuppo é diretor de Jornalismo do Hoje em Dia
jornalismo@hojeemdia.com.br

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