Injustiça institucionalizada

07/08/2018 às 21:14.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:49

Há uma sutileza importante, latente, e ainda assim, pouco alardeada, que, ao menos desde o ano passado, tem cercado a ruindade do nosso calendário: a Série A passou a correr riscos ainda mais evidentes de simplesmente não refletir, sequer remotamente, a verdade técnica, a justiça. A agenda de boa parte dos clubes mais fortes tornou-se tão cheia, errante, confusa, atribulada; a quantidade de partidas decisivas em que estes esquadrões preservam os titulares no certame de pontos corridos, tão grande, que a disputa nesta competição chegou ao nível de, em certo sentido, perder a razão de ser.  

A linha entre o péssimo e o impraticável muitas vezes pode ser tênue. Cruzamos este limite. O produto vem perdendo em termos de qualidade, também pelos problemas de calendário, há anos. Jogos com menos intensidade, foco, antecedidos sem qualquer preparo minimamente sofisticado ao longo da semana: tudo isso a gente já sabe e deveria ser combatido. Mas quando se atinge o patamar de tácita e talvez inconscientemente – ou não... –, abrir-se mão, descartar-se o campeonato nacional mais nobre, ele há de se reciclar – fica estranho demais continuar concedendo-o mesmo status a partir do momento no qual ele é tratado assim. Impressionante como o hábito, uma espécie de resignação contribui para que nos acostumemos – e não detectemos – o ridículo: milhões envolvidos, toda uma cadeia econômica, cultural, social (...), eternas discussões/análises feitas girando em torno de algo que, no fundo, não se conhece mais como seria se de fato os melhores de cada participante tentassem; não é a “realidade” de cada um que está ali justamente representada, avaliada. Quando se acha normal falarmos abertamente, de boca tão cheia – com razão –, que São Paulo e Inter podem se beneficiar tão decisiva e claramente – mesmo sendo hipoteticamente inferiores – pelo fato de, por exemplo, Palmeiras, Grêmio, Flamengo e Cruzeiro estarem preocupados com outras coisas, é por termos perdido a mão – ou então passemos a considerar “oficialmente” o campeonato como os europeus costumam julgar suas copas: como competições menores. Não há a menor lógica em desprezar o que em teoria é o mais importante – ou em continuar considerando como mais relevante o que é relegado. 

Um cotejo como o do último fim de semana, entre Flamengo e Grêmio, teria de ser um daqueles picos que os campeonatos de pontos corridos nos reservam paulatinamente, de maneira mais distribuída; numa disputa em que não há finais, em que os melhores cortes são servidos como num “menu degustação” – e não em um só prato –, as partidas mais emblemáticas, as receitas mais saborosas são aquelas que reúnem os desafiantes, os ingredientes que oferecem o que existe de mais privilegiado no que tange à qualidade; se corriqueira e intencionalmente, os próprios clubes, os próprios chefs, reservam para estas ocasiões muitas de suas matérias-primas secundárias, paremos: é como se a tão esperada disputa – ou o baquete minimamente digno deste nome – sequer tivesse acontecido... No todo, se este expediente se repete tanto, é como se a verdade se dissolvesse e sequer fosse testada, colocada à prova...

Desde o ano passado há quase um consenso de que o Grêmio é o melhor time do Brasil – ou num mínimo um candidato seríssimo ao posto. Como podemos decretar o verdadeiro campeão do Nacional se uma força desta grandeza – por uma decisão quase sempre ao menos em larga medida justificável, intencional, mas por “motivos de força maior” – sequer tenta “pra valer” abocanhar este título? Se a França tivesse vencido a Copa e, por querer – mas não “gratuitamente” –, numa quantidade acima do aceitável e/ou num embate decisivo, o Brasil jogasse sem Neymar, Coutinho e Jesus, a Argentina preservasse Messi (...), a Bélgica escanteasse Hazard, Lukaku e De Bruyne, não acharíamos a conquista do Mundial “estranha”?   

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