Um gênio falando do outro

19/07/2017 às 10:54.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:38


Num meio frequentemente retrógrado e especialmente machista como o do esporte, falar da graça, do charme, da beleza nos movimentos de um atleta, no seu jeito de ser, jogar, não é tão corriqueiro. Bobagem. Aqui não temos esse problema. Na verdade, em todos os segmentos, mesmo os sujeitos mais toscos, atrasados, no que se refere à alçada ali levantada, invariavelmente se envolvem, passam a gostar de determinado personagem do mesmo sexo, ainda que inconscientemente, atraídos, fisgados por elementos um tanto conectados a uma espécie peculiar de carisma; à sexualidade – não vinculada ao desejo, a qualquer impulso homossexual, na alçada neste espaço descrita –, a um tipo de magnetismo pouco tangível, concreto. O encantamento de um adolescente pelo >frontman que, no palco, parece falar não por meio das palavras; o exalar mudo de sentimentos, ideias... Como é comum o travamento, a dificuldade para ver e/ou enxergar/assumir certas verdades; como, nos moldes explanados por Schopenhauer, não queremos porque encontramos motivos, e sim encontramos motivos porque queremos, muita gente, ao ser “hipnotizada”, acredita e/ou diz que a razão daquela admiração é pautada somente em critérios técnicos, racionais; méritos, características palpáveis e atreladas à atividade do ídolo em questão.


Existe algo na de atuar, de se mexer em quadra – não só durante os pontos –, na linguagem corporal, de Roger Federer, que, não bastasse o fato de ele ser “só” o melhor, o mais completo de todos os tempos, contribui sorrateiramente para a adoração gerada pelo suíço. Para o aumento de sua torcida. Afinal, sejamos francos, não é apenas no futebol que a torcida usualmente tem pouco a ver com uma escolha racional, seguida de uma análise fria dos méritos de todos os candidatos.


Até agora não falei propriamente da beleza do jogo, dos golpes de Roger Federer. Além e entrelaçada a todo charme, a uma aura especial que ele carrega, em sintonia com este atributo, está a graça de todo o seu tênis. Assistir Federer em quadra desperta em mim uma coceira inexplicável de voltar à prática deste esporte.


David Foster Wallace, escritor americano que suicidou-se em 2008, tem profunda ligação com o tênis. Sua obra-prima, “Graça Infinita”, carrega forte relação com o esporte que foi praticado pelo autor pra valer durante quase toda a juventude. Wallace também escreveu artigos, ensaios sobre a modalidade. Um deles, “Federer como experiência religiosa”, traduzido por Daniel Galera, foi publicado pela Companhia das Letras junto a outros trabalhos de não ficção do gênio americano. Neste, abordando a estética do jogo de Federer, Wallace diz: “A beleza humana sobre a qual falamos aqui é um tipo particular de beleza; podemos chamá-la de beleza cinética. Sua força e seu apelo são universais. Não tem nada a ver com sexo ou normas culturais. Parece ter a ver, isso sim, com a reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”. 


Na biografia de Wallace, escrita por D. T. Max – “Every Love Story is a Ghost Story”, sem publicação no Brasil –, fala-se que a promissora carreira tenística juvenil do cultuado autor não foi para frente, a partir de determinado ponto, entre outras coisas, porque este tenderia a “pensar em excesso” cada golpe durante suas partidas. Suspeito fortemente que nesta tese talvez estejamos diante de uma romantização. O escritor genial, obsessivo, perfeccionista, perturbado... Falando da inteligência de Federer, porém, no artigo acima mencionado, Wallace crava: “Federer é capaz de enxergar, ou criar, aberturas e ângulos para golpes vencedores que ninguém mais consegue visionar (...). O que é mais difícil de avaliar na TV é que esses ângulos visualmente espetaculares e golpes vencedores não vêm do nada – com frequência, são preparados com muitos golpes de antecipação (...)”. 
 

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