Entre gotas de sangue e rabiscos de criança

07/07/2021 às 19:40.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:21

Marcelo Batista

A educação deve oferecer novas condições para o indivíduo. Ela é importante para tirar as pessoas de uma situação de opressão e para oferecer a possibilidade de transformação. Nas palavras de Paulo Freire, ela deve ser libertadora. Mesmo assim, muitos indivíduos no Brasil não conseguem ter acesso ao ensino de qualidade e por isso permanecem oprimidos. Como um dos caminhos para a melhoria individual e coletiva é a educação, é necessário que haja o engajamento dos profissionais do ensino para mudar a realidade, de alguma maneira. Eu já me engajei, e muito.

Era uma terça-feira. De duas em duas semanas eu dava aula em um cursinho para alunos transexuais que sofriam com a exclusão das mais diversas formas: algumas das alunas viviam da prostituição e muitas delas não haviam concluído nem mesmo o ensino fundamental. Na turma, todos estudavam redação. Era no mês de abril, véspera de Páscoa. Pensando nisso, comprei bombons para celebrar a data.

Ao chegar com a caixa, o silêncio. Eles não sabiam o que fazer: deveriam comer ou esperar? Deveriam aceitar o presente? Depois de alguns segundos de um silêncio constrangedor, uma das alunas sugere que comecem a comer; outra grita que esperem o fim do texto, para comerem no fim da aula; uma terceira pede que parem de discutir e comam logo os bombons. Um estalo. Sai, rapidamente, um primeiro soco.

Não imaginava, de maneira alguma, que daquela situação sairia a minha primeira situação de violência física entre alunos em sala de aula. Enquanto as duas estudantes se socavam no chão, em meio a xingamentos e barulhos de objetos sendo derrubados, outros continuavam escrevendo normalmente a redação. “Que se matem logo, mas fora da sala”, escuto da boca de algum dos colegas.

Entre as roupas rasgadas e a violência explícita, ficava indignado e triste com a indiferença dos colegas que presenciavam a cena. Naquele dia, naquela hora, a educação perdeu para a violência, tão forte e naturalizada entre aquelas pessoas. Naquele dia, mesmo sem saber, de maneira simbólica encerraria o meu trabalho naquela ONG. Continuei dando aulas para a turma por algum tempo, mas naquele momento a minha esperança já havia saído da sala de aula.

Lembrei da história quando nesta semana foi revelada a última carta de Lázaro Barbosa, o criminoso mais procurado do Brasil nas últimas décadas. Ela estava na jaqueta do homem que foi assassinado com mais de 30 tiros e não chegou a ser enviada. A imprensa mostrou-a para relatar sua possível contratação como matador de aluguel, mas acabou revelando muito mais para mim. Eu, como professor de português, observava as letras com uma grafia infantil, os desvios em relação à norma-culta e as marcas de sangue no papel. Quando será que o último professor desistiu da educação daquele homem? Naquela letra surrada em um papel amassado havia as últimas palavras que alguém escreveu antes de morrer, com letra infantil, em mais um dia em que a educação perdeu para a violência.

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