Religião x liberdade de expressão (Parte 1)

10/01/2020 às 15:41.
Atualizado em 27/10/2021 às 02:15

Um assunto que dominou o noticiário na semana passada foi a decisão judicial que proibiu a Netflix de continuar oferecendo em seu catálogo o especial de Natal do Porta dos Fundos. A decisão foi dada em caráter liminar, atendendo a um pedido do Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, instituição ligada à Igreja Católica. O argumento do pedido foi que, ao insinuar que Jesus Cristo seria homossexual, “a honra e a dignidade de milhões de católicos foram gravemente vilipendiadas” pelo programa de humor. A liminar acatou o argumento e é uma decisão péssima, por duas razões:

A primeira, porque, na prática, provoca um efeito inverso ao pretendido. A censura (e a decisão não é nada mais do que isso) tem como uma de suas primeiras consequências provocar curiosidade nas pessoas. Inúmeros brasileiros que nunca haviam ouvido falar sobre o programa humorístico agora têm notícia dele e estão pesquisando sobre ele na internet. Outros tantos, que já haviam ouvido falar, mas não tinham interesse em assistir, assistiram para formar a própria opinião ou pelo menos para conhecer o que era, antes que fosse tirado do ar. Foi o meu caso, e também o de várias outras pessoas do meu convívio.

Para quem queria que algo não fosse assistido ou conhecido, o processo e a decisão foram um tiro no pé. Não poderia haver ferramenta de divulgação melhor para o Porta dos Fundos e isso já era de se prever. Aconteceu exatamente a mesma coisa quando Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, mandou retirar de circulação, em setembro de 2019, uma revista em quadrinhos dos Vingadores cuja capa estampava dois homens se beijando. O lote inteiro da revista foi vendido, antes que os fiscais da prefeitura conseguissem cumprir a decisão do chefe.

E ainda que neste caso os oficiais de Justiça tivessem sido mais rápidos que os fiscais da prefeitura do Rio, o próprio pedido do processo demonstra um desconhecimento brutal do mundo conectado em que vivemos. Ainda que o programa do Porta dos Fundos fosse retirado do Netflix, alguém tem dúvidas de que ele iria parar no YouTube e em milhares de outros sites no minuto seguinte?

A segunda e principal razão pela qual a decisão é péssima é porque ela desrespeita a liberdade de expressão, e esse é um caminho perigoso para a tirania. Sei que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e que possui limites, mas esse limite nunca pode ser “o que pode ofender alguém”. Falarei mais sobre isso na próxima semana. Até lá, comemoremos que o STF derrubou a liminar e afastou a censura até julgamento final da ação.

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