Um novo Cálice

27/08/2021 às 17:51.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:46

Em 1973, Chico e Gil compuseram a genial “Cálice”, música que só pôde ser lançada em 1978 e se tornou hino contra a ditadura e a censura por ela imposta à manifestação do pensamento no Brasil. Para as autoridades da época, a música constituía crítica ilegítima e infundada, e colocava em risco a estabilidade do regime vigente.

Passados quase 50 anos, o Brasil continua com autoridades públicas querendo determinar o que constitui ou não crítica legítima ou infundada e com o receio que a livre manifestação do pensamento também provoque instabilidade no regime vigente.

A decisão dos censores da ditadura, de 1973, era condizente com a brutalidade e obtusidade do regime da época. A decisão atual, e falo da decisão do TSE de 16/08/21, de bloquear as receitas de canais de internet que questionam a segurança das urnas eletrônicas, é, em si mesma, um risco para o regime atual.

Constatar que tal decisão contraria os princípios fundamentais do nosso regime democrático não constitui, nem de longe, endosso para os absurdos divulgados pelos canais desmonetizados. Constitui, apenas, alerta para os riscos infinitamente maiores decorrentes da permissão para que autoridades públicas decidam o que constitui ou não uma crítica legítima ou bem fundamentada e, com isso, quais opiniões podem circular e quais vozes devem ser caladas.

Somados, os perfis bolsonaristas que tiveram suas receitas bloqueadas não alcançam 5% da população. A decisão de censura do TSE coloca um cálice na mesa de 100% dos brasileiros. Hoje, canais bolsonaristas foram forçados a beber dele. Amanhã, pode ser qualquer um de nós, ao arbítrio do ministro de ocasião.

Críticas infundadas se combatem com informação, com fatos e provas do que se pretende defender, não com mordaça. Eventuais abusos se combatem com processos a posteriori, seja para exigir direito de resposta, indenizações ou outras penas, jamais com censura. Não falta orçamento ao TSE para divulgar amplamente as informações, fatos e provas que julgar necessárias para desmentir as críticas tidas como infundadas, tampouco lhe faltam procuradores para processar quem, em sua avaliação, comete abuso.

Faltaram, todavia, respeito à livre manifestação do pensamento estabelecido na Constituição e também inteligência, pois a censura apenas colocou lenha na fogueira da polarização e reforçou as teorias da conspiração daqueles que tentou calar, conferindo-lhes uma legitimidade que antes nunca tiveram.

Quem deseja defender a democracia não pode se rebaixar ao arbítrio defendido por aqueles que desejam desmoralizá-la.
 

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